Nem me lembro mais da última festa de réveillon a que compareci. Para dizer a verdade, nunca fui muito de frequentar esses eventos. No entanto, sempre gostei de ver na TV a cobertura das festas e seus fantásticos shows de fogos: de Kirimati à Samoa americana, onde acontecem, respectivamente, o primeiro e o último réveillons. É, o primeiro não é em Sidnei, descubro no Google. Em todos eles, vejo hoje um personagem recorrente: o celular.
Todo mundo tem um e aí todo mundo faz um filme do réveillon em que está. São filmes de celular, mostrando outros celulares, filmando o que deveria ser…. visto. Mas ninguém vê, pois filma. E aí ninguém mais é plateia ou audiência. Todo mundo é repórter e diretor, querendo que alguém veja o que ele mesmo não viu.
John Lennon escreveu em “Beautiful boy” que “vida é aquilo que acontece enquanto você está fazendo outros planos”. Ele parafraseou Allen Saunders (“a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”) e eu parafraseio os dois: vida é o que acontece enquanto você está filmando… a vida.
Isso me lembra quando fui à Europa. Aproveito para aqui fazer um parêntese. As pessoas ricas, que viajam muito por todo o mundo, diriam “em uma viagem que fiz à Europa”. Estas têm “riquema” e certa dificuldade para lembrar em qual viagem aconteceu tal coisa. Eu, como sou pobre, tenho “pobrema”, então fui uma vez só e digo, sem tibubear, “quando fui à Europa”.
Pois bem, quando fui à Europa no final do século passado, lembro-me que, em qualquer superponto turístico, tipo Museu do Louvre, Notre Dame, Coliseu, Prado, Ramblas, Marienplatz, fosse ele uma praça ou um museu, de repente aparecia do nada um bando de japoneses – na época, eles meio que dominavam o mundo e eram cheios da grana.
Os japoneses, incrivelmente lépidos, percorriam tudo em exatos dez minutos, espocando flashes e tirando centenas de fotos. Ninguém via nada, só fotografava. Alguém me disse – e eu nunca confirmei – que eles tinham apenas dez dias de férias por ano e faziam um roteiro apertado para conhecer um continente em tão pouco tempo. Ou seja, eles só viam a viagem quando voltavam para casa, depois de revelarem os filmes de suas Canon, Nikon, Pentax ou Olympus – todas eram fabricadas por eles.
Com os celulares, que além de fotografar, filmam, parece que o mundo inteiro tem férias de dez dias. Até em Brasília, onde as jornadas de trabalho são mais flexíveis e as de descanso, mais ainda. E isso ficou especialmente claro na posse de Lula, que foi a última a acontecer no dia seguinte ao reveillon – a próxima posse presidencial, para quem não sabe, será no dia 5 de janeiro.
Enquanto o povo, entusiasmado, se emocionou com a passagem do novo presidente debaixo de um sol senegalês, as personalidades do novo governo, e as de todos os governos, se acotovelavam em sítios mais confortáveis, mais próximas do périplo presidencial. Em comum, os celulares, com os quais boa parte, fossem eles deputados, centristas, comunistas ou passistas, filmava o que não via.
Na Esplanada dos Ministérios, no Congresso, no Itamaraty ou no Planalto, esse pessoal estava que nem japonês de férias na captura de pixels. Celular na mão, pouco ouviram do que o novo presidente tinha a dizer ao país ou pouco viram do cerimonial cheio de simbolismos. Simplesmente filmaram tudo.
Para ver depois em casa, dirá você … se estivéssemos no início da década de 90. Mas hoje tudo, mas tudo mesmo, está nas redes sociais no mesmo momento em que acontece. E o mais estranho é que, com raríssimas exceções, os “filmadores”, sejam eles de réveillons ou de posses presidenciais, sequer aparecem nos filmes dizendo “olha eu aqui, mamãe”- quanto muito, estão no cantinho das selfies. Afinal, ninguém filma para eles, pois todos estão fazendo seus próprios filmes.
Filmes que, cheguei à conclusão, só eu vou ver, porque, infelizmente, não fui.