Para quem não sabe, o cimento é um vilão do clima

Para quem não sabe, o cimento é um vilão do clima

Um artigo de Marcos Lobato Martins*

Fonte da Foto: Revista Manchete Ano 1967 Edição 0779 – Biblioteca Nacional Digital Revistas. (Cedida por Aroldo Morais)

No ano do Centenário de emancipação política de Pedro Leopoldo, é bom avaliar os aspectos importantes da trajetória do município. Um deles é, sem dúvida, o papel que a indústria do cimento e concreto desempenhou. Ela consolidou nossa entrada na Modernidade, mais especificamente, na Segunda Revolução Industrial, nos meandros da vida urbana e do industrialismo. Na verdade, aprisionou a cidade e sua gente nessa temporalidade, nesse modo de vida tão característico das primeiras décadas do século 20. A indústria do cimento e concreto tornou o município, simultaneamente, proletário e rico nos anos 1950-1980 – fomos alçados, na década de 1970, ao grupo dos vinte mais ricos lugares de Minas Gerais –; mas, na virada do século 20 para o 21, as cimenteiras não conseguiram sustentar a cidade como membro desse grupo seleto.

Não há por que nos surpreender com isto. Na medida certa, o remédio cura a doença; em dose alta, ele envenena o corpo. As coisas parecem ser assim, têm sempre um lado bom e um lado ruim. O mundo possui incontáveis maravilhas, emparelhadas a miríades de feiuras e desastres. A julgar pelas objurgatórias de François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), nem Deus escaparia às incongruências. Diante da tragédia do terremoto de Lisboa, no ano de 1755, Voltaire se indignou: como Deus pode ver algo bom em suplícios massivos, agonias indescritíveis e misérias a engolir quase todos? Como explicar a existência de um Deus bom e justo que permite ou promove desgraças humanas? E concluiu, com evidente sarcasmo, que “a vida é estúpida, o mundo é estúpido, mas tudo vale a pena ser vivido”. (PQP, esta é a descrição perfeita para Pedro Leopoldo e o sentimento dos seus naturais.)

Pois bem, o cimento e o concreto também carregam esta dualidade, esta natureza que contém traços bons e traços maus. Artigos hoje tão comuns, banais mesmo, contribuíram para abrir caminho para a grande onda de progresso nas construções e infraestruturas que culminou na hipermodernidade. Não se pode falar em Modernidade sem pensar nas paisagens transformadas pelo concreto armado, nas construções gigantescas feitas com o agregado de areia, brita, cimento e aço, na arquitetura pródiga em curvas e sustentação com poucos pontos. Muitos dos mais notáveis emblemas da Modernidade são obras em concreto – pontes, viadutos, túneis, barragens, estradas, arranha-céus, estádios. Na solidez do concreto armado, o mundo contemporâneo foi e continua sendo construído.

Pedro Leopoldo esteve no boom da construção com concreto armado que varreu o estado e o país desde os anos 1950, cujo emblema foram as obras do presidente JK e do arquiteto Oscar Niemeyer. A outrora “capital mineira do cimento” ainda se orgulha de ter participado ativamente das façanhas e do alto padrão de vida que a dupla cimento/concreto possibilitou. Seus moradores apreciam falar que boa parte das famílias locais esteve direta ou indiretamente ligada ao setor da mineração e da indústria da construção e do mobiliário. Gostamos de saber que ajudamos a espalhar pelos quatro cantos do país construções de concreto, esse material simples, barato, forte e durável. Os materiais da alvenaria são, para os pedro-leopoldenses, o sangue que jorra nas artérias de suas autorrepresentações.

No entanto, o cimento e o concreto são dois “assassinos do clima”, dois sorrateiros fatores de degradação ambiental, cuja cadeia produtiva responde por cerca de 8% das emissões mundiais de CO2 (dióxido de carbono), um dos gases causadores do “efeito estufa”, do aquecimento global. Para fazer uma tonelada de concreto, mais de 600 kg de dióxido de carbono são liberados no ar. Estima-se que as emissões anuais da indústria de cimento aumentarão continuamente até 2050, das atuais 2,5 gigatons de CO2 para 3,8. É mais fácil achar solução para as emissões dos carros ou das usinas de carvão, do que para as emissões geradas pelas fábricas de cimento. Os especialistas são unânimes em dizer que a produção de cimento a partir do calcário consome uma energia enorme, pois os fornos das cimenteiras devem alcançar 1400o C de temperatura para a calcinação. Atingir tal “quentura” a custos módicos foi possível, durante todo o século 20, graças ao uso de combustíveis fósseis.

A produção do cimento Portland libera CO2 por causa da queima de combustíveis para aquecer os fornos, e por causa das reações químicas que acontecem dentro deles. O carbonato de cálcio do calcário se une ao dióxido de silício da argila para formar silicatos de cálcio, havendo bastante liberação de dióxido de carbono. Conclusão: a indústria que nos trouxe à Modernidade não é sustentável, e figura entre os principais vilões do clima.

Jamais encontrei conterrâneos que estimassem a quantidade de CO2 que nossas cimenteiras lançaram na atmosfera, a formidável “lagoa” de óleos combustíveis que queimaram, as montanhas de areia, argila e cascalho que consumiram. Jamais ouvi pedro-leopoldenses falarem abertamente sobre as emissões da indústria do cimento e concreto. Queixávamo-nos do pó, isto é, das partículas poluentes que as cimenteiras lançavam sobre a cidade, e mencionávamos as doenças respiratórias resultantes. Nossa gritaria era contra o descaso com os filtros e, esteticamente, contra o dissabor de ver diariamente colunas espessas de fuligem ocre mancharem nosso céu. Era feio. Ansiávamos pela limpeza, pela fabricação livre de poeira, mas nunca discutimos seriamente a sustentabilidade do setor cimento/concreto. Sempre nos comportamos como os antigos passageiros das marias-fumaças: eles botavam guarda-pós durante a viagem, e, ao chegarem no destino, tiravam os guarda-pós e seguiam com as roupas limpinhas para seus compromissos.

Ora, o futuro, que bate à nossa porta, não permitirá que prolonguemos esta atitude.

O enorme impacto ambiental do cimento (e do concreto) é algo difícil de enfrentar. Primeiro, por causa dos desafios técnicos envolvidos; e, em segundo lugar, por que o cimento e o concreto são materiais que, há mais de cem anos, o mundo inteiro vem se acostumando a empregar em volumes enormes.

Simplesmente não é factível deixar de usar imediatamente o cimento e o concreto armado na construção de cidades e infraestruturas (de energia, saneamento, transportes etc.). Sem essa dupla será mais ingrato o enfrentamento da terrível carência de moradias populares de qualidade que há em todo o mundo. O concreto é o material construtivo mais usado no planeta. Nos dias atuais, a China emprega mais concreto por ano do que todo o restante dos países. Desde 2003, a cada dois anos, os chineses consomem mais concreto do que os americanos consumiram durante todo o século 20. O consumo mundial, ao final da primeira década do século 21, foi de 11 bilhões de toneladas – uma quantidade fabulosa, que dá uma média de 1,9 tonelada de concreto por habitante. No século 16, durante os dramáticos episódios da conquista do Peru e Bolívia, os incas acreditaram que os espanhóis comiam ouro e prata, tal o apetite que demostravam por esses metais. Dessa forma, não será espantoso que um extraterrestre venha a pensar que os humanos, desde fins do século 19, comem concreto.

No Brasil, embora a construção civil tenha vivido recentemente instabilidades consideráveis, o concreto que sai das centrais dosadoras gira em torno de 30 milhões de metros cúbicos anuais. Em 2022, havia no país 22 grupos cimenteiros (nacionais e estrangeiros), operando 103 fábricas (distribuídas por 82 municípios de 23 estados), com capacidade instalada para a produção de 106 milhões de toneladas/ano, mas a produção efetiva alcançou 63,5 milhões de toneladas. A alvenaria e o concreto armado dominam amplamente a construção civil brasileira, e gozam de sólida predileção nas cabeças de nossos engenheiros e arquitetos.

Materiais construtivos alternativos ao cimento e ao concreto também não se mostram muito mais sustentáveis. A produção do alumínio, do aço e do vidro emite mais gases e partículas poluentes que a do cimento; uma grande expansão da madeira na construção, que pode ser usada com durabilidade em certas regiões do planeta e do país, colocará mais pressão de desmatamento sobre florestas que lutam combate renhido para sobreviver; materiais alternativos (como o adobe e a taipa, por exemplo) e técnicas construtivas tradicionais parecem não possuir capacidade de responder a demandas de grande escala, comuns em grandes obras e nas metrópoles. Ora, isso significa que o cimento e o concreto armado continuarão a ser bastante empregados por muitas décadas.

Então, não existe outra saída. Teremos que enfrentar os desafios técnicos, que não são poucos e nem fáceis de solucionar, para tornar a produção de cimento e de concreto mais sustentável. Há que se caminhar para o emprego de energias renováveis para fazer funcionar os fornos de calcinação. Teremos que desenvolver tecnologias para capturar o CO2 emitido na fabricação do cimento; as tecnologias que já existem ainda são muito caras e viáveis em pequena escala. Será preciso aumentar a reciclagem dos resíduos gerados nas construções e nas demolições, fazendo-os voltar adequadamente ao ciclo da realização de obras. E, o que não depende apenas da indústria do cimento e concreto, mas envolve engenheiros, arquitetos, gestores e cidadãos de uma forma geral, teremos que incrementar a elaboração de projetos de edifícios e obras públicas mais eficientes e com vida útil maior.

Mas, se o Brasil produz 1,3% do cimento mundial e, nossa cidade, cerca de 2 ou 3%, no máximo, do cimento produzido no Brasil, por que devemos nos preocupar com esses problemas? Se somos tão “pequeninos”, que diferença fará a gente lidar ou não com a pegada ambiental da indústria do cimento e concreto? Eu diria, em primeiro lugar, que a questão ambiental é local e global, isto é, requer esforços de todos, pequenos ou grandes. Em segundo lugar, se nossas empresas cimenteiras e de materiais de construção derem de ombros ao esforço ambiental, correrão o risco de serem alijadas do mercado, pois os consumidores (empresas, governos e indivíduos) estão cada vez mais atentos aos temas ecológicos e, portanto, tendem crescentemente a optar pelos produtos que demostrarem ser fabricados de maneira mais sustentável.

Eis aqui uma das missões que podemos eleger para construir futuro melhor em nosso município: promover o upgrade tecnológico e ambiental da cadeia local de produção de cimento, concreto e outros materiais de construção.

E já que falamos em impactos ambientais, é bom assinalar que a emissão de gases de efeito estufa e de partículas poluentes não é, historicamente, o único problema que a indústria do cimento e concreto, e, mais genericamente, o setor de materiais de construção causa em Pedro Leopoldo. Eu mesmo custei a ter consciência disso. Insight que, pode-se dizer, me veio anedoticamente, devido ao estranhamento que uma cena me causou durante viagem ao município de Jequitinhonha (MG), quando atravessei a ponte sobre o rio São Miguel que margeia aquela cidade. Dentro do pequeno leito do afluente do Jequitinhonha, havia alguns homens com água acima da cintura, munidos de pás, que retiravam areia do fundo do rio e lançavam-na em diminutas canoas. Na margem, à espera das canoas, havia um par de carroças para serem carregadas. Presumi que as carroças transportariam a areia do São Miguel para depósitos na cidade ou mesmo diretamente para canteiros de obras em andamento.

Esta cena, no início de 2006, abriu minha memória da infância em Pedro Leopoldo, na virada dos anos 1960 para os anos 1970. Quando passeava pela cidade explorando seus cantinhos, a pé ou de bicicleta, e sem rumo certo, vi coisa idêntica no Ribeirão das Neves (na altura do pontilhão da estrada de ferro, perto do Parque de Exposições, e logo acima da ponte que possibilitava o acesso ao lugar que chamávamos de Cascavel, hoje bairro Santo Antônio). Também pude ver essa modalidade arcaica de exploração de areia no Ribeirão da Mata, logo abaixo do distrito de Dr. Lund, quando ia de automóvel para a capital. Mas ali, neste trecho do Ribeirão da Mata, as dragas se faziam cada vez mais presentes e, assim, nos chamados “portos de areia”, as canoas e as carroças eram substituídas por bombas de sucção, caminhões e tratores, que sujavam as águas com óleo e graxa, e retiravam uma quantidade descomunal de areia, arrebentando com as margens dos cursos d’água e dando-lhes uma turbidez impenetrável.

Lembrei-me também das muitas caieiras que ainda havia na periferia da cidade, nos Cochos (Lagoa de Santo Antônio) e em Dr. Lund, que queimavam pilhas e pilhas de lenha para produzir cal virgem; e do britador de mandíbula que havia no alto da rua Anélio Caldas – a rua de minha casa –, praticamente ao lado da Estação, encostado a um pequeno desvio da linha férrea. De segunda a sexta, religiosamente ao cair da tarde, estacionava no britador uma “Rural”. Desciam dela o coronel Theotônio Baptista – velhinho elegante de terno, chapéu e bengala – e seu filho Jair, a examinarem as operações de trituração das pedras e de embarque da brita nos vagões.

Tudo isto era uma sobrevivência da economia extrativa que havia no município desde o início do século 20, que adquiriu impulso gradativamente com a expansão de Belo Horizonte e, a partir de meados dos anos 1950, com a instalação na cidade de cimenteiras – vorazes consumidoras de areia, argila, brita e calcário. Desde então, a ação das dragas nos portos de areia e argila degradou, primeiro, nossos ribeirões e, em seguida, transformou em “tabuleiros de pirulitos” suas várzeas, as planícies de inundação onde antes os meninos capturavam joaninhas, vagalumes e passarinhos. As matas ciliares, por conseguinte, praticamente desapareceram. Nos anos 1990, muitas das antigas fazendas de Pedro Leopoldo não se dedicavam mais à lavoura ou à pecuária, mas somente à extração de areia e argila. Viraram “fazendas de areia”, e os fazendeiros, extrativistas, quando não sócios menores de pequenas e médias empresas mineradoras, auferindo porcentagens das receitas da comercialização das jazidas de minerais “classe 3”, conforme o jargão do DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral).

Ironicamente, justo no momento de auge da transformação de nossas antigas fazendas em portos de areia, ganharam força e visibilidade na cidade as cavalgadas e as festas de muladeiros. Assomaram os cowboys do asfalto. Fenômeno tão esdrúxulo como poeira em alto mar. Coisa do Reino de Pedro Leopoldo! Seria uma espécie singular de retorno do recalcado? Um sintoma de patológica nostalgia da roça e do cheiro de curral? Uma tentativa de restauração simbólica do poder e do gozo das antigas oligarquias rurais? Talvez tudo isso, regado a muita cerveja e embalado em música sertaneja de duvidosa qualidade.

Na porção norte do município, nas terras entre a margem esquerda do Ribeirão da Mata e o Rio das Velhas, a extração de calcário e de pedras ornamentais, que remonta ao início do século 20, adquiriu vulto enorme no período 1960-1990, destacando-se as pedreiras da Cauê, Ciminas e Lapa Vermelha. A região do carste em Pedro Leopoldo, cujo valor arqueológico e paleontológico é mundialmente conhecido, sofreu agressões intensas durante toda a segunda metade do século 20, desferidas pelos extratores de calcário, cascalho, pedra ardósia e pedra lagoa santa. Nos anos 1980 e 1990, as serrarias de pedra em Lagoa de Santo Antônio e Fidalgo tornaram-se verdadeiras pragas. Aliás, no Brasil todo, a extração ilegal de areia e pedras é, simultaneamente, e já há bastante tempo, um negócio milionário, e devastador de rios, restingas, matas e até praias.

Quem conhece bem o território de Pedro Leopoldo ou o visitante com olhar treinado que examina nossas paisagens atuais, fica abismado com a difusão e a profundidade das cicatrizes que a extração mineral deixou na superfície do município. Em cinquenta anos, no intervalo de duas gerações, destruímos quase toda a beleza cênica que Edgar Walter, Alberto Braga e Pacheco Silva retrataram em suas telas, ou que José Issa Filho descreveu em seus livros. Isto é parte inextricável do legado da indústria do cimento, do concreto e dos materiais de construção, o coração da nossa indústria no século 20.

Por conseguinte, aqueles que apregoam o turismo como uma das alternativas econômicas futuras de Pedro Leopoldo, e aqueles que abraçam fervorosamente a causa do patrimônio, deveriam imediatamente propor o tombamento pelo Poder Municipal de algumas das cicatrizes mais imponentes que a mineração gravou na “pele pedro-leopoldense” (enormes buracos e ruínas de pedreiras, desbarrancamentos e trechos assoreados de cursos d’água). E erigir nelas receptivos, trilhas, passarelas, sinalização turística e tudo o mais que compõe a infraestrutura dos grandes atrativos. Essas cicatrizes revelam muito de nossa história e de nossa cultura, são eloquentes meios de acesso aos projetos que nortearam as ações de fração poderosa de nossos antepassados, e que ainda persistem entre nós.

Enfim, voltando a Voltaire, retomo uma de suas provocações: “Eu respeito o seu Deus, mas amo o Universo”. Pois é, entendo os meus conterrâneos que endeusam a indústria cimenteira, respeito-os sinceramente, mas creio que devem ser advertidos de que se trata de um deus que impõe desgraças, que já comprometeu a situação de Pedro Leopoldo. Cabe questioná-lo: “tudo está o melhor possível?”

Não sejamos estúpidos: devemos amar a cidade e sua gente, não a indústria do cimento e do concreto, do mobiliário e da construção civil. E, portanto, devemos honestamente perguntar se, e em quais condições, queremos que essa indústria faça parte de nosso futuro.

*Marcos Lobato Martins é professor da UFVJM, Campus Diamantina

Redação

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