Marcos Lobato inicia o projeto 100 anos de PL e de Zé Issa

Marcos Lobato inicia o projeto 100 anos de PL e de Zé Issa

“Aqui estamos nós,

a cidade de Pedro Leopoldo e eu.

No começo ela se chamou, liricamente,

Cachoeira das Três Moças.

Com o correr dos anos, ainda liricamente,

recebeu o nome de Cachoeira Grande.

Mais tarde, após a construção da estação ferroviária,

sem nenhum lirismo,

apenas por vontade dos chefes políticos do lugar,

deram-lhe o nome de Pedro Leopoldo.

E havia um bondinho puxado a burro

que levava fardos de algodão

da estação ferroviária para a fábrica de tecidos

e levava fardos de chita

da fábrica de tecidos para a estação ferroviária.

Enquanto o bondinho ia e vinha,

com suas carga de fardos e poesia,

a cidade crescia.

E surgiam casas humildes em suas ruas descalças,

enfeitadas pelas estrelinhas alaranjadas

das flores das vassourinhas.

Enquanto o bondinho ia e vinha,

a população crescia.

Uma população de gente boa, sempre alegre e hospitaleira

(Ó de casa! Pode entrar, a casa é sua!)….

Assim começa o poema “Cidade de Pedro Leopoldo”, de José Issa Filho, no qual ele lamenta, já em 2004, a inevitável separação da cidade “que o prende com seus laços de ternura”. Zé Issa, como todos o chamávamos, insistia em dizer, até sua morte em 2015, que era mais velho que a cidade – ele nasceu em 12 de abril de 1923, portanto nove meses e quinze dias antes da emancipação. Era uma brincadeira, um gracejo, que, no entanto, mostrava com clareza sua profunda ligação com a cidade.

Como poucas pessoas, Zé Issa amou Pedro Leopoldo. E como menos pessoas ainda, escreveu maravilhosamente sobre ela. Uma prosa (e poesia) afetuosa, amorosa, rica e sábia – um presente eterno para uma cidade que completa seu primeiro centenário. É, as cidades têm esse privilégio de viverem vários centenários.  E os grandes escritores, como Zé Issa, vivem para sempre nos corações e mentes de seus leitores.

Por este motivo e seguindo o conselho do nosso primeiro autor a escrever sobre o Zé – o professor Marcos Lobato – é que iniciamos hoje, a cinco dias do aniversário de 100 anos de Pedro Leopoldo, o projeto 100 anos de PL e Zé Issa. É uma pequena homenagem feita ao nosso maior escritor, através da publicação de uma série de artigos sobre o Zé, assinados por pedro-leopoldenses.

Como disse Marcos Lobato, se há algo a comemorar no ano do centenário de PL é justamente a riqueza de figuras como ele. Ao destacar sua história e sua obra, o objetivo do AQUI PL nada mais é do que estimular nossos jovens a lerem os livros de Zé Issa. E, quem sabe, todos os livros possíveis….

O primeiro artigo, como já disse, é do Marcos Lobato. Trata-se de um prefácio para um livro do Zé que não chegou a ser publicado. Agradecemos ainda os artistas gráficos Aloney Diniz e Juliane Rios. Deliciem-se (Bianca Alves)

A LITERATURA DE JOSÉ ISSA FILHO

Conta, conta, cantador.

Conta a história que eu pedi.

(Gonzaga Medeiros, poeta e compositor de Fronteira dos Vales, MG)

 

Você já viu gente que é dois, que é múltipla?

Eu já, no tempo da meninice. Na beira da linha do trem de ferro que corta a cidadezinha de Pedro Leopoldo. Perto da estação, na rua acima dos trilhos, diante do jardim de dona Inah.

O homem era estranho e nem disfarçava. Tinha nome pequeno como a figura dele: Zé Issa. Aparecia justo quando o jogo de bola alcançava o auge, alvoroçando a meninada. Surgia a chamar o Zeca e o Marcão pra tomar banho, vestir roupa limpa e decente e ir à missa. Gritava o nome deles e abanava a cabeça, se virava e os dois o seguiam sem titubear. Num átimo, desmanchava o divertimento. Descompletava os times. Abreviava a pelada.

Zé Issa estava de mal com a vida? Quem era Zé Issa?

Um desmancha-prazeres com cara de boi bravo, despenteado, enigmático, com movimentos disparados feito boneco de engonço. Era o pai chato que nenhum de nós queria ter, a guardar nos bolsos as horas mágicas da infância, a exigir comportamentos que não podíamos admitir quando se tem apenas doze, treze anos.

Era o homem que tinha parte com o padre Sinfrônio e as ladainhas arcabuzeadas na Matriz. Maçada. Pura maçada.

Na minha infância, Zé Issa era o quê?

Era o pai do Zeca e do Marcão, exilado na seriedade, na quase mudez. Tinha regras no peito. Tinha lições em casa. E uma filharada em escadinha grande, lembrando a gravura de Debret que mostra o passeio de uma família de funcionário da Coroa portuguesa no Rio de Janeiro colonial.

Zé Issa era teatro de outro tempo. De um tempo que não desgarrava do presente, a despeito de ser passado. E, para piorar, era dentista. Não poderia haver figura em maior conflito com meu jeito infantil de ver o mundo, de sonhar o futuro. Deus nos livre de porvir com cáries e tratamentos de canal!

Para minha consciência de calças curtas, ingênua e simplória, Zé Issa existia fora de época. Parecia assombração de ossatura mineral plantada na esquina da rua São Sebastião com a rua principal.

Mas a roda da fortuna girou, coisa que não pode se recusar a fazer. Os anos escorreram. Pedro Leopoldo cresceu. Enfeiou. As espinhas na minha pele foram substituídas por pintas escuras. Marcas de expressão pontearam no rosto. Fios de cabelo branco também. Ocupei-me em perseguir minha sina: estudar pra virar doutor.

Gastei tanta energia na capital e na Diamantina. Diminuíram-me o otimismo e a convicção na força da racionalidade, no poder da ciência. A vida ficou gradualmente mais dura de suportar, mais complicada, mais sombria, obstinadamente sem sentido. Não era mais uma dádiva. Nem o bastante.

Então, novamente, após muitos anos, encontrei Zé Issa num canto empoeirado da biblioteca de meu pai. Dentro de lombada fininha, habitando folhas amarelecidas de livreto graficamente tosco. Era o Zé Issa da novela Rua de São Sebastião, espécie de faroeste caboclo que botava mistério – e lírica riqueza – na Pedro Leopoldo de antanho. Depois me caíram nas mãos os contos d’O Mascate Elias.

Quanta surpresa! Zé Issa era também outro, diferente daquele que interrompia o futebol na rua Anélio Caldas. Eu errara redondamente em imaginá-lo criatura plana, convencional.

Zé Issa era dentista e artista – uma contradição em termos. Escritor. Fabulista. Fabuloso. Levei tempo para me dar conta disso.

A ficha caiu de vez quando veio a público o primeiro volume da trilogia Coisas do Reino de Pedro Leopoldo. O danado transformara nossa cidadezinha em matéria literária, redimindo nossa crônica miudeza. Conferiu-lhe dimensões míticas. Mutação realizada com humor e economia de meios, em prosa límpida, no tom de conversa entre velhos amigos. Uma proeza da qual jamais se gabou…

Depois de ler estes livros, andei pela cidade como se ela fosse do mesmo tamanho de Paris ou São Petersburgo – capitais literárias do mundo –, experimentando sentimento engraçado, cheio de moral, sem orgulho besta ou paroquialismo. E isto era bom!

Iluminou-se persona de Zé Issa que me permanecera incógnita. O griot, o narrador no sentido antigo, que todo lugar outrora possuía, mas que hoje praticamente desapareceu no torvelinho das coisas novidadeiras e da fragmentação.

Descobri o Zé Issa capaz de arrancar gritos de admiração e despertar emoções profundas. O Zé Issa observador, da observação empática, que mistura na dose certa realismo e ironia. O Zé Issa embaixador do reino que há por trás dos reinos, a mapear seus acidentes, códigos, muros e chaves, a humanizar a urbe e sua gente coberta por pó de cimento e minúsculos flocos de algodão.

Pedro Leopoldo, sim senhor, afinal possuía seu contador de estórias inventadas e casos acontecidos. Tão generoso que punha um halo de simpatia irresistível e imerecida no ambiente e nas personagens que brotavam da sua máquina de escrever, no modesto escritório na casa da rua do Fórum.

Das qualidades de sua literatura, desejo realçar três que considero principais. A primeira é o sabor do estilo. A narração direta, que não se desvia, não quebra o ritmo, valoriza o enredo, vazada em linguagem simples, evitando os modismos e construções dialetais, e os experimentalismos formais de vanguardas arrogantes.

Zé Issa bem sabia que “a beleza salvará o mundo”. Mas compreendeu que literatura não é escrever coisas bonitas, rebuscadas, fazendo marchetaria com as palavras. Seu dote maior era manifestar-se à vontade. Por isso, à máxima de Fiódor Dostoiévski, justapôs o princípio da simplicidade.

A simplicidade salvará o mundo! Porque a simplicidade entrelaça corações, arma as maiores festas, cultiva jardins, ergue pontes entre lugares.

A segunda qualidade é a imparcialidade para com as suas personagens. Ele as respeita e jamais se apressa em adotar algum julgamento cômodo sobre elas. Não alimenta polêmicas, amola arestas, infunde polarizações, avulta conflitos. Em suas histórias, as paixões humanas – boas e más –, sempre presentes, decidem tanto assuntos graves como banais. Dessa forma, ele ressalta a trama da vida, a relação de pessoa a pessoa que ainda hoje se impõe no cotidiano, como é de estilo no interior do Brasil.

Me pergunto como foi possível manter essa atitude, que trai uma incondicional ternura pelas suas criaturas. Talvez isso se deva ao fato de que Zé Issa nunca respirou fundo desânimo com a humanidade, com os brasileiros. Ponto para ele. Mesmo desconfiado, acreditava na profecia sebastianista do sertão que vira mar, curando gradualmente seus males. Era assim que ele fazia política, ao lado do dr. Hélio Issa, na porta da loja de tecidos do turco Nagib.

A terceira qualidade da literatura de Zé Issa é a solução que deu ao problema crucial da verossimilhança. Dando bananas às teorias, pouco se preocupou com a exatidão e consistência de todos os pormenores. Optou pela intensidade para destilar credibilidade na ficção. Ele escrevia como quem participa de conversa de compadres e comadres na porta de casa, de cantoria na festa de padroeiro ou de mutirão no bairro camponês. Suas narrativas se apoiavam na (e expressavam a) experiência coletiva de homens e mulheres comuns que viveram em um cenário que exige força moral, coragem, honra, orgulho, vergonha, determinação, convicção, dignidade e perseverança.

A “intensidade”, em certa acepção antropológica, traz dentro de si a ideia de iniciativa, de lúdico, de autonomia. E percorre, em graus variados, as vivências e práticas culturais dos grupos pobres das comunidades sertanejas. Habita seus projetos e orienta suas posturas ante a vida, além de ser uma linguagem comum e partilhada nos sertões. Como escreveu Guimarães Rosa: “Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso”. Bastando o aparecimento de qualquer incidente, as personagens de Zé Issa, ainda que pobres e sofridas, transfiguram-se em titãs acobreados procurando elaborar novas formas de bem viver.

Ainda a respeito da verossimilhança, há que sublinhar o papel da memória, incontornável na escrita de Zé Issa. Falando francamente, toda sua obra é fundamentada (direta ou indiretamente) na memória. Por conseguinte, a palavra aparece nela, em seu fulcro constitutivo, como sabedoria e verdade.

Juntas e misturadas, a intensidade e a memória garantiram a credibilidade da ficção de Zé Issa. Munido de uma percepção êmica, o cabra-da-peste sertanejo-sírio-libanês, dentista-artista, expôs verdades condensadas que só por acaso a vida alcança. Seu amor pelos fatos vividos e sua honestidade revelaram dimensões insuspeitadas sobre a sociedade formada ao redor da Cachoeira das Três Moças.

Para Zé Issa, contar/escrever não era apenas ocupação ou passatempo, era opinião. Profissão de fé, percurso identitário, celebração dos laços comunitários e modo de dizer como as gentes do lugar viveram o seu sertão, e de como queriam vivê-lo.

Enfim, a Pedro Leopoldo de Zé Issa – que é sertão e é mundo –, sem ser idílica, cor-de-rosa, mistura a dureza da vida com a intensidade, a alegria, o improviso, o lamento, a fé e a esperança.

O homem, de cabeleira estranha e tantas personas, tinha o fado de saber, cacoete de etnógrafo, e parte com Atena. Além de ser um dos prediletos de Polímnia. Todavia, não deu mostras de ser benquisto pelos deuses do futebol.

Aos jovens leitores – que conhecerão Zé Issa só de retrato –, é necessário dizer que ele existiu de se pegar, de se cumprimentar, de caminhar pelas ruas reais imperfeitamente tradutoras do reino que ele criou na imaginação e na memória. E eternizou no papel.

Marcos Lobato Martins

São João da Chapada, 20 de julho de 2018.

 

Bianca Alves

Criadora e editora do projeto AQUI PL, é formada em Comunicação Social pela UFMG e trabalhou em publicações como os jornais O Tempo, Pampulha, O Globo; revistas Isto é, Fato Relevante, Sebrae, Mercado Comum e site Os Novos Inconfidentes

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