Pedro Leopoldo e eu temos quase a mesma idade. Nasci no dia 11 de abril de 1923 e no dia 27 de janeiro de 1924 foi instalado o município. Foi um dia de muita festa, com bandas de música, foguetes, as ruas, as praças e o Grupo Escolar São José enfeitados de bandeirolas coloridas, o povo em suas melhores roupas, o bondinho puxado a burro, com o condutor de terno branco e gravata borboleta azul, levando moças e rapazes da Praça Dr. Senra até a Praça da Estação e da Praça da Estação até a Praça Dr. Senra. Era a primeira festa da recém-nascida cidade de Pedro Leopoldo. Cidade que vai crescendo sem perder uma gota de sua ternura, e que, com seu povo humilde e bom, fica para sempre no coração de quem vive nela ainda que por poucos dias.
Quem vê a cidade de hoje não pode nem por sombra imaginar a cidade da minha infância, com mangueiras e mamoeiros junto aos muros baixos. As casas pequenas, as portas fechadas com tramelas, as chaminés no telhado da cozinha para lançar para o alto a fumaça do fogão a lenha. O banho era no quarto, com lata de água quente, bacia e caneca. O parto era em casa, a morte era em casa, o velório era em casa, as doenças eram tratadas em casa.
Meu pai morreu quando eu tinha sete anos e minha mãe vinte e nove. Foi um momento muito difícil para nós. Só nos restou uma casa velha na esquina da Rua São Sebastião. Na época, não tivemos condição nem de comprar uma sepultura para meu pai. Ele foi enterrado num jazigo temporário.
Fiz o primeiro grau no Grupo Escolar São José, o único grupo que existia em nossa terra naquele tempo. Eu ia descalço para as aulas. Não tínhamos dinheiro para comprar sapatos.
Quatro anos depois, às sete horas da manhã, entrei num vagão de segunda do trem do sertão, a fim de descer em Sete Lagoas, onde ia estudar num Ginásio Interno, o Dom Silvério. Naquela noite, chorei baixinho com saudade de Pedro Leopoldo e de minha mãe. Muitos anos depois, ao ver o filme “E.T. O Extra Terrestre”, comoveu-me o suave e repetido apelo daquela estranha criatura que, com as lágrimas brilhando nos olhos, gemia: “My house! My house!” Eu havia feito o mesmo apelo em surdina, meio século antes, debaixo de uma colcha branca, numa cama do dormitório daquele Ginásio Interno em Sete Lagoas.
Após concluir a quinta série ginasial fui estudar odontologia em Belo Horizonte. Com vinte e dois anos de idade, já formado, voltei para minha terra. Em todos esses anos nunca estive completamente afastado dela. Havia as férias, a semana santa e outras oportunidades para poder retornar à cidade de meus sonhos. Havia também o poder mágico do pensamento, capaz de trazê-la, quando a saudade apertava, para junto de mim, com o apito da fábrica de tecidos, com o murmúrio da cachoeira, com o canto dos galos nas madrugadas.
Dizer que uma cidade cabe dentro de um coração é um exagero. Dizer que uma cidade cabe com folga dentro de um coração, e ele ainda fica querendo mais, é um exagero ainda maior. Mas a verdade é que, para onde vou, levo a cidade de Pedro Leopoldo no coração e ainda fica espaço para muitos amarrados de saudades de um mundo de coisas que ficaram para trás.
No ano de 1948, participei da reunião de eleição da primeira diretoria provisória do Ginásio do Município de Pedro Leopoldo, atual Escola Estadual Imaculada Conceição. Confesso que me senti envaidecido de ter sido escolhido, na reunião, tesoureiro de uma sociedade em que eu era o mais jovem de seus membros, além de ter contribuído para a criação do primeiro ginásio de Pedro Leopoldo. Até aquela data, quem quisesse fazer o ginasial precisava estudar fora daqui. E estudar fora significava morar fora.
Em 1951, fui nomeado para o cargo de adjunto de promotor de justiça da comarca de Pedro Leopoldo pelo Governador Jucelino Kubitschek. Sei que você vai estranhar o fato de um dentista ser nomeado para o cargo de adjunto de promotor. Eu apenas posso dizer que foi coisa de época. Época de poucos advogados. Era um cargo sem remuneração e que se limitava a cobrir as ausências do promotor de justiça que residia em Belo Horizonte. O que dava para ir levando sem prejudicar o meu trabalho de dentista. Após quatorze anos exercendo esse cargo, pedi exoneração.
Sempre gostei de andar pelas ruas de minha terra, de me encontrar com velhos amigos que, dia a dia, o tempo foi reduzindo. Tive a sorte de viver neste bonito vale desde o dia em que nasci. E posso dizer, sem medo de errar, que o povo daqui é um povo bom e alegre, e que nossa terra é uma terra abençoada. Que o lugar tem um friozinho gostoso no inverno e no tempo de chuva não temos dessas tempestades capazes de destruir pontes, estradas, casas. Às vezes cai uma chuva mais forte, mas não arrasa a cidade como acontece em outros lugares.
Pedro Leopoldo, para mim, foi e é tudo. Nela nasci, nela me casei, nela nasceram meus nove filhos, nela os vi crescer. Sei que existem muitas outras cidades tão boas para se viver quanto ela. Mas ela é a minha cidade. Quem leu o Pequeno Principe me compreende: “Ela é a minha rosa”. Está comigo e ficará sempre comigo a bondade e a alegria de seu povo.
Pedro Leopoldo é uma cidade jovem e boa para se viver. Ah, Pedro Leopoldo, pedacinho do céu na terra… Pedacinho de céu de se guardar para sempre no coração e na saudade… Deu-me os sonhos que sonhei. A verdade é que sinto que fui feliz nela. E é isso que me leva a gostar de escrever a sua história, não de maneira minuciosa, mas de maneira simples como costumo escrever. E foi assim que escrevi e publiquei quinze livros: romances, crônicas, contos e poesias. A maioria deles sobre histórias e fatos acontecidos aqui. Fui premiado duas vezes em concursos realizados pela Academia Mineira de Letras: Em 1965, com o livro “O Outro Lado do Rio” e em 1968 com o livro “O Mascate Elias”. Mas prêmio não preenche o vazio de quem se dedica à arte. Serve apenas como reconhecimento de nosso trabalho. Poucas pessoas conseguem entender o que move aqueles que se dedicam à literatura. A gente não busca nada com ela. Nem riqueza, nem fama, nem sucesso. Mas ela nos atrai como um ímã. Não conseguimos viver bem sem ela. Eu mesmo, sempre gostei de escrever. De escrever e de ler. Depois dos trabalhos e das preocupações do dia, fico até tarde da noite escrevendo. Vou moendo no áspero, vou caminhando no escuro, vou guardando na gaveta as páginas terminadas. Um dia, uma tia rica, sem entender direito o motivo de todo aquele trabalho, me perguntou por que eu ficava nessa besteira de escrever, se não ganhava nada com isso. E eu fiquei sem saber o que responder. Até hoje, quando me lembro da pergunta dela ainda não sei direito o que responder, visto que não sei se escrevo por vício ou ideal ou desejo de aparecer ou terapia ou doença ou vaidade ou loucura ou compulsão ou mesmo por frescura do coração. A verdade é que não consigo parar de escrever.
Vale a pena?
Sei lá, é uma pergunta difícil da gente responder. Mas seria muito bom se pudesse começar tudo de novo… Que bom seria!…
(Esse arquivo foi construído por Ângelo Issa, que compilou textos de várias obras de José Issa e os montou em ordem cronológica, de modo a descrever a sua história).