CRÔNICAS DA FAZENDA MODELO

CRÔNICAS DA FAZENDA MODELO

A Carona

Por Luiz Kuchenbecker 

– Por gentileza, o senhor pode me dar uma carona até ao Matuto?

– Sinto muito, não estou indo para lá, seria um prazer…

O jeito foi mesmo ir caminhando. Embora ainda bem cedo, o sol de verão já se fazia bem quente. Sorte que a estrada era sombreada,  desde a cidade até o final da Fazenda Modelo, por bambus que cresciam de um e outro lado, formando uma alameda extensa. Não fosse a poeira, o passeio teria sido mais agradável.

Chegando à vila, que fica logo após a Fazenda Modelo, encontro, na sua rua principal, espanador em punho, tirando a poeira do automóvel, o mesmo senhor a quem havia, minutos antes, pedido a carona.

– Uai! O senhor disse que não estava vindo para o Matuto! Foi só para não dar carona a um estranho?

– Disse e não estava mesmo. Estava vindo para Santo Antônio da Barra. Somente por isso não lhe dei carona.

– Então isto aqui não é Matuto?

– Não. Isto aqui é Santo Antônio da Barra.

– Queira me desculpar, devo ter me enganado, mas em Pedro Leopoldo me informaram que o Matuto ficava logo após a Fazenda Modelo. O senhor sabe me dizer onde é? Devo procurar uma pessoa que, me disseram com certeza, morar no Matuto.

– Posso saber a quem o senhor está procurando? Talvez eu conheça.

– Não gravei o nome, sei que trabalha na Fazenda Modelo e tem uma oficina para conserto de bicicletas e máquinas de costura, qualquer pessoa do Matuto informaria. O senhor conhece?

– Conheço. O senhor foi mal orientado. Eu trabalho na Fazenda Modelo, conserto máquina de costura e bicicleta. Esta é minha casa, à suas ordens. Só não moro no Matuto porque Matuto não existe, sou um criado a seu dispor. E da próxima vez peça carona para Santo Antônio da Barra.

– É muita coincidência, acho que alguém está fazendo hora com a minha cara…

– Nada disso, vamos entrar, eu lhe explico. Antes, porém, vamos ao assunto que lhe interessa, já que o senhor estava à minha procura. Em que posso lhe servir?

– O negócio é o seguinte: é possível que eu venha a trabalhar na Fazenda Modelo. Estou procurando lugar pra morar; me falaram que muitos funcionários da Fazenda moram no Matuto, perdão, Santo Antônio da Barra, e que o senhor poderia me orientar. Achei que seria bom dar uma olhada. Se puder me ajudar ficarei muito agradecido.

– Não tem nada que agradecer, é minha obrigação. Vamos tomar um cafezinho e depois dar uma volta por ai, para o senhor conhecer. O senhor quer alugar ou comprar?

– Para alugar, mas futuramente, quem sabe, a gente possa comprar. Os imóveis aqui são muito valorizados?

– Não sei se está muito valorizado ou se é a gente que ganha pouco. Dependendo da  oportunidade ainda se pode fazer um bom negócio.

– O que o senhor me diz da Fazenda Modelo? Qual sua função lá?

– Tem havido muita modificação ultimamente, mas ainda é um bom lugar para quem quiser trabalhar. Já foi bem melhor. Sou um simples salta moitas, comecei ainda criança, como guia de bois. Já fiz de tudo, hoje sou encarregado das cavalariças, estou na bica da aposentadoria.

– Não entendi, o senhor disse que é salta moitas?

– É, salta moitas, pessoa comum, operário, trabalhador. Os mais importantes saltam mais alto. E o senhor é agrônomo ou veterinário?

– Sendo assim, sou um simples salta moitas. Sou funcionário do estado, fiz concurso no DASP e fui nomeado para trabalhar na Fazenda, estou dando uma olhada para depois resolver.

– Posso lhe garantir que será bem recebido e será um prazer tê-lo em nosso meio.

– Muito obrigado, bondade sua. Foi muito bom ter lhe conhecido, estou muito grato por tudo, mas o senhor ainda me deve uma explicação sobre o Matuto. Se por acaso eu vier a residir por aqui é bom ficar por dentro de tudo, o senhor não acha?

– Se continuar falando Matuto vai ficar é por fora, isso é palavrão que não admito. Vou lhe perdoar porque o senhor é estranho e me agradei da sua pessoa. Se vier mesmo trabalhar na Fazenda, creio que seremos amigos, assim espero. Essa vila que o senhor acabou de conhecer nasceu nas terras da Fazenda Terreiro Grande. Já se chamou Matuto, mas isso é coisa do passado. Eu mesmo fui um dos que liderou a campanha para a mudança do nome. Vou contar desde o princípio toda a história, tudo que sei, por ter ouvido dizer ou por ter vivido:

Há muitos anos passados, aqui foi a rota e pousada do pessoal que fazia o transporte de madeiras da Jaguara  , nas margens do Rio das Velhas, para a mina de Morro Velho. Essa madeira, destinada ao escoramento da mina de ouro, era transportada em carretões puxados a bois, cujo trajeto e pousadas principais eram em Mocambeiro, Fazenda Terreiro Grande, Neves e Contagem.

O movimento era grande e empregava bastante pessoal. Como em tantos outros lugares, em torno dessas pousadas foram surgindo alguns ranchos e em pouco tempo formou-se o povoado. Não sei por que, tomou o nome de Matuto. O ribeirão que o senhor viu ali nos fundos chama-se Ribeirão do Matuto, é nome oficial, está nos mapas. Se o ribeirão tomou o nome do povoado ou o povoado o nome do ribeirão, não posso afirmar. Sei que Matuto quer dizer caipira, gente do mato. O povoado virou arraial e, mesmo após ter paralisado o transporte de madeira, não parou de crescer e hoje é esta vila que o senhor está vendo, benza a deus.

Logo ali, abaixo, fica a Fazenda da Barra. O senhor passou por ela. Chama-se Fazenda da Barra porque tem um pequeno córrego que faz barra com o Ribeirão do Matuto. Certa ocasião, não sei quando, alguns homens tiravam areia para construção, justamente naquela barra. Encontraram uma pequena imagem de madeira, representando a figura de Santo Antônio. Foi um reboliço. Surgiu ai a ideia da mudança do nome, foi mesmo inspiração divina.

Iniciamos logo o movimento, fizemos abaixo assinado à Câmara de Vereadores de Pedro Leopoldo, e assim, rapidamente, a lei foi votada, aprovada e sancionada, decretando a mudança do nome de Matuto para Santo Antônio da Barra, pois fora nas areias da Barra que a imagem do santo foi encontrada. Até parece que a mudança do nome deu outro alento ao lugar que não parou de crescer. Hoje temos água canalizada, rede e esgotos, telefone, toda infraestrutura de cidade grande. Sempre lutei e continuo lutando pelo melhoramento do lugar que é a minha terra e, definitivamente, só dou carona para Santo Antônio da Barra.

– Já tomei muito do seu tempo e fiquei conhecendo a história da sua terra, mas agora tenho que ir andando, talvez consiga carona para Pedro Leopoldo, tenho que pegar o ônibus para Belo Horizonte. Muito obrigado por tudo e até a vista, quem sabe na Fazenda Modelo.

Tendo mesmo me transferido para a Fazenda do Ministério da Agricultura, achei mais conveniente residir em Pedro Leopoldo. Logo aprendi que grande parte da população, talvez por comodismo, continua denominando aquela vila pelo seu nome tradicional de Matuto, mesmo os que lá residem. Como predissera o meu informante, ficamos amigos e nas cavalariças da Fazenda Modelo, que ele, com capacidade e conhecimento, tão bem dirigia, muitas e muitas vezes proseamos. Ouvi muitas histórias. Ouvi e assisti:

Uma tarde, logo após o almoço, conversávamos tranquilamente quando chega um funcionário muito apressado e solicita-lhe uma charrete para ir a Santo Antônio da Barra.

– Sinto muito, mas não tenho nenhuma charrete disponível no momento.

– Por favor, quebra meu galho. – Disse o tal funcionário – Tenho muita necessidade de ir a Santo Antônio da Barra.

– Infelizmente, não tenho jeito mesmo de atendê-lo, pois não há charrete desocupada.

– Mas senhor, tem aí uma charrete já atrelada, vou rápido e volto logo.

– Lamento não poder ajudar, esta charrete já está requisitada pelo veterinário para ir ao retiro do Papo Sujo, sinceramente, lamento.

– Tudo bem, vou a pé mesmo, mas fique o senhor sabendo: vou a pé, mas vou para o MATUTO…

E lá se foi, pisando duro em direção ao Matuto, desculpem, Santo Antônio da Barra.

Redação

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