CARTA AO ENGENHEIRO DESCONHECIDO

CARTA AO ENGENHEIRO DESCONHECIDO

Uma crônica de Alan Passos *

Acabamos de comemorar seu aniversário, Engenheiro. Do torrão que carrega seu nome, quer dizer. Esse nome que ouço desde meu primeiro vagido e se entranhou em mim, a ponto de enfim exigir um homem por trás dos sons, fonemas antes de saber falar, já os escutava: pêdruleôpoudu, não é assim que pronunciamos e ouvimos?

Bianca vai reclamar do emprego da palavra vagido. Ora, pois pois. Numa época em que, pasme Engenheiro, escuta-se um advogado com OAB e tudo lascar um “se ele dizer” e um doutor PHD meter um “se você manter” e nosso bucólico governador e seus “vou estar fazendo” isso ou aquilo…. vagido é o de menos. Ou de mais.

Quem sabe Clarice Lispector, iluminando a condição feminina assim: “Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era a morte pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer um desastre. Seu esforço de viver parecia que se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido” (…).

Mas e o Carlos Drummond de Andrade, na maravilhosa Carta aos nascidos em maio? Mandou lá um primeiro vagido também. Aliás cara, eu nasci em maio. Tomou, papudo? Você, ouço dizer, nasceu em dois de dezembro de 1850. Menos mal, pois o poeta maior, que não significa maior poeta como os beócios pensam, sabe Engenheiro, aquele poeta cujos temas são grandiosos e transcendentais, como João Pessoa e T. S. Elliot, por exemplo, e os poetas e poetisas menores são os que tratam de coisas (na aparência) corriqueiras e cotidianas, nonadas, que nem Vinícius que se autointitulava poetinha, Adélia Prado talvez…mas enfim, o Drummond fez ressalva aos nascidos na segunda quinzena de  dezembro (não é seu caso), mas eu nasci em MAIO, entendeu?

E nessas terras onde escuto seu obscuro nome desde o primeiro vagido. Vamos lançar luz nessa obscuridade? Topas? Tamo junto. Mas vamos a maio com as menininhas aladas e as noivas evanescentes: “Não estou delirando, ó criaturas de maio. Tudo isto se passa em outro hemisfério, mas também por estas bandas austrais maio é primavera, senão na natureza, pelo menos em estado de espírito, em concordância íntima de valores, em consubstanciações vaporosas de que cada um de nós adquire a fórmula, a qual, ó eleitos, nem sequer precisais aprender, pois a recebestes com o primeiro vagido.”

Tentemos colocar significado nesse significante Pedro Leopoldo. É seu nome, sua pessoa, não são apenas sons que associo imediatamente, ou seja, sem mediação, ao lugar onde nasci e fui criado, moldado, emoldurado. Dura moldura que dura, dizer seu nome milhões de vezes sem saber nada sobre você. Só sei que você nasceu em São Cristóvão, Sergipe, cidade talvez tão interessante quanto a que você nomeou, pois foi fundada em 1 de janeiro de 1590. Hoje tem 95.612 habitantes, uns 30.000 a mais que seu topônimo. Não sei o nome de sua esposa. Você se formou pela Escola de Engenharia do Exército, não sei qual nem onde. Você ajudou a projetar a estrada de ferro. Mais nada. Morreu em Sabará, em 9 de agosto de 1894. Lucas Soares Neiva, o Doutor Neiva, seu colega engenheiro na mesma empreitada, foi casado com a Sra. Rita Viana, de família local, portanto, presume-se que morou na cidade, já, você, tudo indica que não.  Ele apenas dá nome a uma rua.  (Em “Pedro Leopoldo entre letras e histórias: memórias de uma cidade centenária”, de Letícia Rodrigues Guimarães Mendes).

Ilmo. Engenheiro Dr. Pedro Leopoldo da Silveira: saibamos mais sobre sua magnificência. Em “Toponímia de Minas Gerais, de Joaquim Ribeiro da Costa (voltaremos a esse livro mais adiante), a única coisa que aprendemos é que Pedro Leopoldo era o nome de estação ferroviária com este nome, homenagem a um dos engenheiros construtores. Rapaz…um dos…quantos eram, quem eram os outros além do Dr. Neiva. Sem contar que quem constrói mesmo são os operários e não os engenheiros, porque você mereceu maior honraria? Se isto aqui fosse um romance, e não uma missiva, uma carta atirada ao mar dentro de uma garrafa, inventaria aqui algo burlesco e frascário ao modo da lenda de Francisco de Melo Palheta e seus métodos de obter, na Guiana Francesa, as primeiras mudas de café que ele contrabandeou para o Brasil, escondidas sob seu uniforme militar.

Bebamos em outras fontes, pois a sede não se aplaca. A Wikipédia só ensina que você foi o engenheiro-chefe responsável pelo prolongamento da ferrovia na região, onde instalou-se a Estação num terreno doado pela Fábrica de Tecidos.

A página oficial da prefeitura do município nos diz mais do mesmo, assim como o IBGE:

“Nessa mesma época, 1895, é também inaugurada a Estação Ferroviária da Central do Brasil, que aqui foi denominada Dr. Pedro Leopoldo, em homenagem ao engenheiro responsável pela construção desse trecho em homenagem ao engenheiro responsável pela construção desse trecho e que havia falecido no ano anterior à sua inauguração.”

De puta madre!! (Interjeição em homenagem ao meu velho amigo Pedro Lithg, que habita terras ibéricas há décadas). Você usurpou os belos nomes Cachoeira Grande e Cachoeira das Três Moças em troca de um trecho de estrada de ferro!

E não sou historiador não, mas, se você bateu as botas em 1894, de “congestão cerebral”, seja lá o que isso for, pois, com apenas 44 anos, deve ter sido algo fulminante, um AVC talvez, e se, como se sabe, foi sepultado em Sabará, parece justo concluir que você nunca morou na cidade que carrega seu nome, como, aliás, confirma Letícia Rodrigues.

“Aos poucos, a localidade que antes era conhecida como Cachoeira Grande passou a ser conhecida pelo nome de sua estação ferroviária: Pedro Leopoldo” (site oficial da Prefeitura Municipal de Pedro Leopoldo).

Como assim, “aos poucos”? E quem escolheu o nome da Estação? A Central do Brasil?

O IBGE usa como fonte a página oficial: “Em 1893, Antônio Alves iniciou as obras da sua fábrica têxtil, que viria a ser inaugurada em 1895. Nessa mesma época, também foi inaugurada a Estação Ferroviária da Central do Brasil, denominada Dr. Pedro Leopoldo, em homenagem ao engenheiro responsável pela sua construção, que havia falecido no ano anterior.
Em 1901, os chefes políticos locais conseguiram a elevação de Pedro Leopoldo a distrito de Santa Luzia. O município, instalado em 1924, foi elevado à categoria de cidade em 1925.”

E você levou a melhor sobre Antônio Alves, que doou o terreno…

Nada tenho contra engenheiros. Muito antes pelo contrário. Erguem e destroem coisas belas. De arquitetos também, nosso Márcio Barbosa teria sido um fabuloso arquiteto, mas preferiu operar em escala menor, porém não menos grandiosa (falemos à boca miúda que o viaduto lá pros lados da Olaria e o CEPEL poderiam ser mais bonitinhos né, e os edifícios horrendos que pisoteiam sem dó o chão de minha terra natal).

Engenheiro, isto posto, il n’ y a pas que des mauvaises nouvelles.

O palavreado francês vem aqui porque, no fin de siécle, todo mundo deslumbrado com as novas tecnologias e o francês Alexandre Gustave Eiffel inflado como um balão por ter erguido sua famosa torre no Champ de Mars para a exposição de 1889, nenhuma surpresa que os engenheiros como você estivessem em alta.

Mas a primeira má notícia: você não está na lista de filhos ilustres de sua cidade natal, que foi fundada em 1590 e é tida como a quarta mais antiga do Brasil.

Ih, rapaz, seu nome não tá lá não. Sinto muito. Estão na lista um jornalista e médico que participou da Guerra do Paraguai, um escritor, ator e diretor teatral, um General de Exército e escritor, um historiador, um poeta, outro jornalista e político, um vigário e historiador, um frei músico e orador, um militar e político que participou da Guerra de Canudos, outro político e militar, um prefeito operário, um comerciante e fiscal da Câmara de Vereadores, um jornalista, abolicionista e promotor, um músico e maestro, um marechal e político, outro historiador, e jornalista e polemista (deve ter sido o Marcos Freitas da cidade), um musicista, uma professora. (Fonte: “Aspectos Históricos, Artísticos, Culturais e Sociais da Cidade de São Cristóvão”, de Ieda Maria Leal Vilela e Maria José Tenório da Silva; Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, site da Emsetur e IBGE).

Também, pudera: foste um mero distrito no povoado de Cachoeira das Três Moças em 1901. Que faleceste subitamente (presumo) durante a execução do seu trecho de estrada de ferro quiçá haja trazido comoção apaixonada, poderosa e fugaz como toda paixão, a um povo cujo Volksgeist, como dizia meu amigo Pedro, consiste em viver não no estado de direito, no estado democrático, no estado de direita ou no estado de esquerda, mas sim num constante estado emocional.

E se passou em brancas nuvens em plagas sergipanas, nada diferente na nuvem digital. Até um zé-mané que nem eu, se alguém lança meu nome no Google, alguma coisa aparece (nem sabe o que a gente gostaria). No seu caso, para “engenheiro Pedro Leopoldo” apareceu uma foto sua, acho que garimpada por Bianca algures; para “Pedro Leopoldo da Silveira” nadica de nada além do que te escrevi nesta carta; umas coisas sobre seu bisneto que visitou seu túmulo trasladado de Sabará… Mas tem coisa melhor atualmente que Google. Inteligência Artificial. Muito melhor. Como sabe, eu mesmo utilizo o Pi Lâmbda para me ajudar nestas cartas, pare que fiquem bem escritas e não firam susceptibilidades que parecem aumentar na mesma proporção geométrica em que aumentam a mediocridade e a burrice das pessoas.

O ChatGPT te confundiu com Santos Dumont. Mas a Meta AI foi mais sincera: “Infelizmente, não encontrei informações sobre um engenheiro chamado Pedro Leopoldo. Pode ser que ele seja uma figura menos conhecida ou que não tenha uma presença online significativa.”

Se você puder fornecer mais contexto ou detalhes sobre quem é Pedro Leopoldo, como por exemplo:

Qual é seu campo de especialização (engenharia civil, mecânica, elétrica, etc.)?

– Imagino que Engenharia Civil, cara Meta IA.

Em que época ele viveu e trabalhou?

– Não tenho muita certeza moça, só sei que trabalhou um tempo em projeto de um trecho de ferrovia em Cachoeira Grande, mas esticou as canelas antes da coisa ficar pronta.

– Quais são suas contribuições ou realizações notáveis?

– Desculpe, mas, que eu saiba, nenhuma.

Vai daí que desde meu primeiro vagido seu nome vem martelando em meu ouvido.

Por fim, pois já me alongo demais, uma folheada no Toponímia de Minas Gerais, já citado. É um livro raro e precioso, mas antigo, isto é uma cartinha pra ti e não um trabalho acadêmico, ficarei com ele, que é da época em que nossa amada Minas Gerais tinha 722 municípios e 631 vilas. Acredito que as proporções estatísticas se tenham mantido hoje que temos 853 municípios, mas se você está com mais tempo que eu, pode atualizar nossa toponímia.

Vamos lá: dos 722, 148 têm nomes do calendário cristão ou expressões a eles alusivas; 360 exprimem aspectos naturais nos três reinos da Natureza (sei que há mais de três reinos nos dias atuais) em língua portuguesa e em tupi-guarani; 142 são nomes de pessoas falecidas ou expressões alusivas; 4 de pessoas vivas (à época da edição, 1993); 68 com motivações diversas, de difícil classificação.

Perguntei à Meta AI quantos e quais municípios de Minas Gerais levam nomes de engenheiros. Acredita que só você? E ela ainda achou que poderia ser uma homenagem ao príncipe Pedro Leopoldo de Habsburgo? Te falei cara, pelo menos no mundo virtual tu tá mal na fita. Aliás, Bianca me lembrou de Francisco Sá, engenheiro nome de cidade no norte de Minas – inteligência natural, né?

Mas pra você ver que a IA ainda não é infalível. Será, se o mundo não acabar até lá, então ela acabará com a humanidade. De volta ao assunto: os algoritmos lá dela interpretaram que eu perguntei engenheiro pelo simples fato de ter sido engenheiro (desculpe o “simples”, mas creio que me entendeu). Devo ser justo: você tem companhia. Apresento-lhe Alfredo Barros de Vasconcelos, que morreu sob um bloco de pedra quando inspecionava o túnel 15 (a velha comoção); Benedito Quintino, que não roubou o nome de Mantena e foi Professor da Escola de Engenharia da UFMG e Diretor do Departamento Geográfico do Estado; Cristiano Otoni, também político e Diretor da Estrada de Ferro Pedro II; Engenheiro Caldas, responsável pela construção da BR 116, Rio-Bahia;  Engenheiro Correia e Engenheiro Navarro (mais dois que morreram em serviço); Engenheiro Schnoor, de ferrovias também mas é apenas distrito de Araçuaí; Ewbank da Câmara, diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil (antiga Estrada de Ferro Dom Pedro II); Henrique Galvão, acho que é distrito de Divinópolis; Hermilo Alves, distrito de Carandaí; Lassance, nome de estação de trem também, esse só prolongou a ferrovia igual a você; Lobo Leite, distrito de Congonhas, mesma história; Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto, história um pouco diferente porque em 1884, quando vocês estavam bombando, implantando estações de trem nos fins de mundo, o cara, Miguel Noel Nascentes Burnier, era Diretor da nossa conhecida Estrada de Fero Pedro II; Olegário Maciel, foi Presidente do Estado; Rodrigo Silva, distrito de Ouro Preto, mais um que puxou um ramal da Central do Brasil.

Fim do rol mais ilustre aqui, bem menos ali. Correndo os olhos assim, alguém pode ter passado batido. Muitos desse distritos devem ter virado municípios. O livro foi escrito quando havia 131 municípios a menos em Minas Gerais.

Prezado Engenheiro

Eu não poderia morrer sem lhe escrever esta carta que vai em pombo-correio vagamundo. Os fonemas que expressam seu nome ao meu redor e por mim durante toda a minha vida custaram a se conectar com o cara. É o que tento fazer.

Devo confessar num arroubo talvez sincericida, que gostaria de ter nascido na Cachoeira das Três Moças ou em Cachoeira Grande. Ou em outro lugar com nome poético e metafórico, como, por exemplo (há incontáveis outros) Mar de Espanha. Um dos primeiros povoadores, de origem espanhola, teria dito, ao ver a cheia na confluência do Paraibuna e do Piabanha: “Parece mar…um mar de Espanha”…!

Digamos que seja uma espécie de trauma. Você os carrega, eu sei. O seu segundo maior evento traumático começou há uns 750 milhões de anos, quando era realmente um mar.  Tudo mar. Depois, todas as conchas e toda coisa marinha que tinha carbonato de cálcio, o mar secou, e aquela gororoba toda virou calcário (já pra virar cimento foi trilhões de vezes mais rápido). Formou-se o carst, para seu azar aí no seu quintal. Com suas grutas, cavernas, uvalas e caveiras célebres como Luzia. Nem Dr. Lund.

Como um dos fundadores do Partido Verde de Pedro Leopoldo, junto com Márcio Barbosa, Bianca Alves e Caetano, afirmo que não temos nada a ver com isso. Com a cidade que leva seu nome ter perdido a fábrica da Heineken. Foi traumático, eu entendo. Mas, se questões puramente ambientais pesassem tanto, não existiria o Aeroporto de Confins nem fábrica de cimento Portland. Vai ser preciso muito divã para superar um trauma de 750 milhões de anos, mas não desista, você consegue.

Seu maior trauma, contudo, é a partida de Chico Xavier, em 1959, salvo engano. Os motivos são melhor explicado por seus (dele) vários biógrafos. Seus restos mortais não foram trasladados para a terra natal. Mas o espírito dele, certamente, foi alçado a alturas bem melhores que a campa de PL. Abreviado assim me soa melhor.

Se, todavia, um dia, em outro Plano, como dizem os que compartilham a mesma fé dele, nos encontrarmos, prezado Engenheiro, faremos as pazes.

Haverá rios, fontes, chuvas refrescantes, infinitas cachoeiras ornadas de nuvens de vapor d’água e arcos-íris sobrepostos. Haverá houris (ou huris, não importa) de olhos amendoados e doces como uva moscatel. Haverá vinho.

Ao pé de cada cachoeira sussurrante, num gramado verde esmeralda coalhado de flores de todas as cores e povoado de seres fabulosos, haverá três lindas moças.

E eu, e você e cada um dará à sua cidade o nome que lhe aprouver.

 

Belo belíssimo Horizonte, 30 de janeiro de 2025.

Alan Freitas Passos

Médico-psiquiatra, psiquiatra forense, médico-legista ( RTD). Escreve de vez em quando

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