Trailer
Dos tempos do Cine Marajá, trago o grande amor pelo cinema, a compreensão instintiva de sua linguagem e a gratidão pelo seu (do Marajá) magistral papel que desempenhou no filme que passará diante dos meus olhos antes da minha partida. Dizem que acontece assim com a gente no momento supremo em que nos abraça a Morte, passa um filme. A Morte, personagem de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman e All That Jazz de Bob Fosse, por exemplo. Claro que gosto mais da bela mulher que flerta com o coreógrafo mulherengo, enquanto ele sabe que seus maus hábitos o levarão brevemente aos cálidos braços dela.
Numa imaginada nota do editor, ou editora, elucida-se que não é um historiador quem escreve. A narrativa fílmica tem suas técnicas para lidar com o tempo, contar a história, conectar o enredo. Nada que aparece na tela está lá por acaso. Cada objeto, cada gesto, cada luz o diretor a dedo escolheu e a mágica da imagem em movimento é que até este é ilusório, o movimento, mas acreditamos. O cinema reflete sobre si mesmo em obras como Oito e Meio, de Fellini, e A Noite Americana, de François Truffaut e não será deselegante, portanto, que quem escreve reflita, pela escrita mesma, aquilo que se escreve.
Conheci um ingênuo apreciador de filmes (cinéfilos não gostam de filmes, gostam do Cinema) que dizia que detestava “filmes mentirosos”. O Tigre e o Dragão de Ang Lee, para ele, é um “filme Mentiroso”. A ingenuidade consiste em não compreender que todo filme é mentiroso.
Juntar metáforas visuais com metáforas linguísticas é a ambição que estrutura o que se verá a seguir, na forma, no conteúdo e no formato do cinema.
Se, como disse Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta, o Cine Marajá foi o oásis que dessedentou com a sétima arte a criança sequiosa perdida no árido deserto cultural da Pedro Leopoldo dos anos sessenta e setenta.
Este é seu preito.
Sobe o pano.
Meantitles.
Trilha sonora: bossa nova, música italiana, música francesa, Beatles, Jovem Guarda.
Filmado em preto-e-branco.
O leito da ferrovia, visto de cima, aparece na tela toda e é como se sobre ele corresse um trem invisível e veloz. Os trilhos são tais quais o celuloide que desliza à frente da intensa luz do carvão, no projetor.
Travelling: o velho caminha ao longo da ferrovia. Saiu de seu casebre ribeirinho na periferia da cidade, atravessou o pontilhão de ferro e segue a passos lentos na noite claroescura. Usa chapéu. Sempre está de chapéu. Fuma um cigarro de palha. Lá adiante, onde começam os postes de luz, vislumbra a travessia, com sua gurita e o guarda-chaves sonolento. Há grilos, coaxares, vagalumes, latidos, ziziares. E tempos idos dos quais não gosta de falar.
A rua deserta e silente emoldurada pelos postes e suas luzes com halos lembra “A Noite Estrelada” de Van Gogh. O menino que surge lá no fundo ainda não sabe nada sobre isso, impressionismo, Van Gogh, maçãs de Cézanne. Foi sozinho ao cinema e, dali onde as luzes se acabam até sua casa, trilha escura ao lado das paralelas de ferro, tem medo de andar sem companhia. O pai o aguarda, tranquilo, tranquilizador. O filme: Peter Pan de Walt Disney. O menino não sabe ler, tem menos de sete anos. Suas calças curtas estão molhadas. Urinou nelas de tanto rir durante o filme, e, por timidez e medo, não foi capaz de ir ao banheiro. O Cine Central não tem banheiros. Dizem. Imagens esparsas de homens mijando num muro ao lado da porta lateral cortinada. Ilusão da memória? Claro que tinha banheiro, diz o narrador. Vai ver não queriam perder tempo e, com isso, um pedaço do filme.
O Cine Central desaparece num fade out.
Corte. Rabiscos e arranhões rupestres cascateiam enquanto trocamos o rolo de filme.
Colorizado por IA. Mesma trilha sonora.
Quadrinhos e cinema com linguagem semelhante. Em parte, analfabeto pode desfrutar.
Storyboard: entrada e saguão do cinema. Portaria. Engraxates cheios de dignidade. Troca de revista antes da matinê de domingo. Entre os iniciados, Mickey é o nome da feirinha. Seriados. Tarzan e Flash Gordon, selva e espaço sideral. A turma do “inteira”, romântica e insonte versão dos futuros pivetes e trombadinhas: “inteira aí pra mim moço!” E nunca os víamos dentro da sala de projeção. Ortoépia: “intéira”.
Technicolor. Tela grande, enorme. Às vezes o filme arrebenta, o projetista se enrola todo e acende a luz. Há apupos e casais constrangidos.
Falar nisso, o nosso herói vai ao cinema pelo menos às quartas e domingos. O pai não precisa mais aguardar na travessia. Não importa a programação, alardeada em cartazes amarrados com arame nos postes da Rua Principal. Rude inocência do final dos sessenta e começo dos setenta, ditadura militar no auge, malhando seus músculos [cartaz colorido no cruzamento da Herbster com Comendador]: “SEXO E VIOLÊNCIA EM ABUNDÂNCIA.” Ninguém nem sonhava com quanta abundância ainda viria.
Falar nisso, o agora adolescente (palavra em desuso na época), o quase rapaz de espinhas no rosto e hormônios em ebulição, na parte de cima do majestoso cinema quase vazio, tira os olhos da tela e, de repente, aos seus pés, na fila de baixo, um homem e uma mulher, jovens, estão se esfregando com entusiasmo. Beijam-se sofregamente e ele desliza a mão por todo o corpo dela, sobre o vestido. E até por baixo. Essa é uma cena quente, escaldante, tórrida. O pobre pubescente perplexo, se é que sabia que homens e mulheres faziam aquilo, nunca tinha visto assim, ao vivo. Mas peraí: esta fita é censura livre, segundo o documento da Divisão de Censura De Diversões Públicas da Polícia Federal que apareceu no começo, então vamos para outra sala de exibição, o Cinema Paradiso
Convidar uma moça para ir ao cinema era o começo de tudo. Mas ainda virá o tempo em que “movies!” será a palavra mágica e o pipoqueiro, o baleiro e o lanterninha serão coadjuvantes nessa história.
Nosso protagonista está alegre. Estará de quando em quando mais triste que a própria Gelsomina de La Strada e mais entediado que o pessoal de La Dolce Vita, mas, nessa sessão, está feliz.
Trilha sonora: Carole King, Carpenters, James Taylor.
O que não se faz por amor: – êpa, um flasforward, porque aqui já é 1974. Nosso bando todo, the wild bunch (no Brasil, Meu Ódio Será Sua Herança, nada a ver), é doido com Sam Pekinpah. “Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia” não vai passar em nossa cidade. Holly shit! Lá vai nosso artista, pega um ônibus para Sete Lagoas, assiste ao filme e volta. Só isso mesmo. Não se sabe e o roteiro não revela se foi no Cine Rivello, no Cine Pepino ou no Meridiano.
Pois então, o paraíso é você ter 15 anos e entre seus amigos estão o filho do dono do cinema e outro da mesma idade que faz bico de vez em quando como porteiro. Se bem que você já havia aberto a carteira de estudante com vapor para bem digamos assim acertar o relógio do Tempo e abrir as portas daquela boate onde as meninas iam de shortinho (flashback) e o pai de sua futura amiga (fastforward dentro do flashback) disparou um tiro de cartucheira doze que (na mosca!) estilhaçou a luz negra em cacos estroboscópicos. Esforço desnecessário, mudar o ano de nascimento na carteira de estudante, o fac-símile grotesco diante do idoso e cansado porteiro das boates que nem olha, adrede colocado na função (pode-se divisar a janela azul de luz negra no segundo andar da esquina da casa do orgulhoso atirador e a outra boate, sua sucessora, o Fuceju, logo mais adiante na mesma rua).
Num toque de humor, em tom de documentário e entrevista, o belicoso se gaba, perante a autoridade, de sua exímia pontaria, garantidora da ausência de uma sequência, à Sam Peckinpah, em câmara lenta, de um monte de pré-adolescentes tombando entre esguichos de sangue. Trilha: He ain’t Heavy, He’s my Brother e Never Marry a Railroad Man, I’ll be There.
As circunstâncias permitiriam mostrar o camarim, os bastidores, até passear atrás da tela. Isso o diretor não quer mostrar, e ninguém quer ver, pois só há mágica aquém.
Roteiro: fragmentos rápidos, em clima de found footage, da repressão na ditadura militar.
Trilha: Paul MacCartney, John Lennon, canções de protesto.
Era preciso ralar de verdade pra ver um par de mamilos, e olhe lá, e tome pornochanchada. Dá até pena ver a meninada hoje, com tudo no mesmo lugar ao mesmo tempo, qualquer perversão aberrante e cabeluda explícita e ao alcance dos dedos [alusão, também explícita nesta parte da trama, que remete ao onanismo. Talvez de mau gosto, quiçá seja suprimida na moviola]. O que é de dar dó desses espectadores atuais: não entender que sugerir-se o que é ocultado quase sempre resulta mais excitante do que o que é mostrado às claras.
Mas, no lugar quase sagrado de que se fala, e que aparece aqui em planos médios numinosos e depois em plano aberto, outras artes tinham proscênio. Pedro Lithg, em recente artigo, lembrou o Coral Ars Nova e as peças “O Santo e A Porca” (essa trazida à cena, salvo engano, pelas mãos de Quim de Alpino. Incidental: atriz amadora atarantada ao ter que vestir um vestido em cena – sobre um outro, é lógico) e “O Auto da Compadecida”, mas esta bem antes daquela, nosso espectador-narrador ainda muito moço quando a obra de Ariano Suassuna foi montada tendo como produtor, diretor de palco, ator, cenógrafo, figurinista, sonoplasta, aderecista, diretor de elenco e diretor de iluminação o dramaturgo, desenhista, pintor, aquarelista, escultor, artesão, radialista, locutor, escritor, poeta, jornalista, professor, ator, hipnotizador, mágico (prestidigitador, pelotiqueiro), médium espírita, ocultista, programador de computação, aquarista (aquariófilo), pesquisador eleitoral, fotógrafo, político, diretor de time de futebol, goleiro e cientista louco Marcos Freitas.
O enredo não pode se ramificar ao modo das séries de streaming. Cem minutos e sem demasiadas palavras, a sessão.
Trilha: The Dark Side of The Moon, Pink Floyd.
O leitmotiv se acelera no ritmo do rock da primeira metade da década de 70.
Fumar atrapalha a projeção. Frase incompreensível para muitas gerações, carece de legendas nos dias de hoje, para que compreendam. Fuma-se em qualquer lugar e a qualquer hora. No avião, na missa, no cinema. A fumaça embaça a imagem e aparece no prismático raio luminoso que jorra da janelinha lá em cima. Às vezes o cheiro é adocicado, noutras seco, patchouli. Tem alguém queimando coisa.
Filmes blaxploitation, Blacula (“the black Drácula”), Shaft, can you dig it ? a lista enorme dos exploitation em geral da qual o exibidor vos poupará. Deliverance Amargo Pesadelo, Straw Dogs Sob o Domínio do Medo… sétima arte, se for arte, para estômagos fortes. Road movies, Easy Rider, blue jeans e motocicletas.
Luz provençal ou andaluz (nem aquela Sala tão eclética exibiria Um Cão Andaluz), festiva luminosidade. Vamos de hippies, paz e amor, amor e não guerra, Godspell, Jesus Cristo Superstar, Romeu e Julieta, Irmão Sol Irmã Lua.
O personagem principal surge em cena como Ursula Andress saindo do mar em 007 Contra o Satânico Dr. No. Não pela feminilidade, mas pelo impacto do inesquecível.
O astro inconteste. Num efeito especial, toda a pequena cidade parece girar ao em torno dele, feito a vinheta da Universal.
É o Cine Marajá. Será iluminada pela Dama da Tocha, cujo raio luminoso o banha como o facho que vem da janelinha de projeção.
Estranho. Ele, o magnífico galã, virá na visão do cineasta com ventos do Neguev, de Hebron, do monte Hermon e do Gerizim, a conciliar em sua atmosfera Gaza e Tel Aviv, El Cid e Saladino, Ismael e Isaac. Pico nevado, nuvens e estrelas douradas da Paramount.
Suas novecentas cadeiras são de cedro do Líbano, seu aroma é de tamareiras.
O pé direito é tão alto que toca o céu. Atrás da majestosa cortina cabem os segredos de todo o universo e, sobre a tela CinemaScope e sob as lentes Panavision, todas as verdades transparecem, límpidas, absolutas.
A solenidade é quebrada quando, desde crianças mais miúdas até vetustos cavalheiros e seriíssimas madames, todos fazem chchchch para o pássaro, também pousado sobre uma montanha, da Condor filmes. Alguns, mais animados, acompanham com gestos até que ele parta em seu voo.
Ao longe, entre a memória e o sonho, o Cine Marajá é um monte nevado entre brumas e encimado por um condor. Nobilíssimo leão em guirlanda de celuloide. No entanto, seu nome vem, misteriosamente, da Índia. O Maharaja, o grande rei. Os antecessores, Cine Central, Cine Otoni, e se houve outros, são figurantes, pelo menos nesta película. Os críticos a chamam, essa película, de grandiloquente. Que não se pode transformar um cinema de cidade do interior no Taj Mahal.
A liturgia prossegue. Sempre a mesma música soa no ar antes da cortina se abrir. Drapeada, consistente, pesada. O cortinado se abre lentamente como um gigantesco acordeon encantado. É chamada de “o prefixo”, a melodia. No alto, entre gradeados, fitas serpenteiam para que ninguém duvide do perfeito funcionamento do ar condicionado.
O “The End” se aproxima. Não haverá final feliz. O artista, que outros espectadores chamam mocinho, morrerá no final.
O Cine Marajá encolheu e sobreviveu como pôde num shopping. Descaminhos culturais nativos, pois em cidades caríssimas como Paris, há muitos cinemas de rua e até galerias deles.
O narrador rodou quadro a quadro a mesma sequência inicial de Hair, de Milos Forman.
Canção: Aquarius/Let the Sunshine In com Fifth Dimension, locação, a estrada ao lado do posto de gasolina.
Não assistiu às exéquias.
Abandonou os shoppings e os cineminhas high tech sound surround sem magia, sem escurinho, sem silêncio, sem amassos, cheios de vazio preenchido às custas de celulares que nunca são desligados, refrigerantes em lata e ciclópicas montanhas de pipoca de micro-ondas.
Compreendeu que a primeira sessão de cinema e a última são as mesmas.
Epílogo: As luzes se acendem. Recomeça a música, a mesma, mas agora, sem coerência, não se chama sufixo. O público sai tranquilamente. Ignoram o letreiro final, que desliza no grande écran.
Final Titles
Elenco (mais ou menos em ordem de aparição)
João Sabino Passos
Alan de Freitas Passos
Edson Jorge
Miná Daher
Márcio Euzébio Barbosa
Marcos Freitas
Pedro Lúcio Light Pereira
Gérson Rogério Ramos
Mauro Siqueira Lopes
Haroldo Duarte Jorge
Celson Alencar Soares Teixeira
Jaques Pereira Bem
Ana Maria Pereira Bem
Trilha sonora: silêncio.
Cai o pano.