A máquina de pós-verdade está pertinho de você

A máquina de pós-verdade está pertinho de você

Pelo custo módico de alguns discursos homofóbicos, xenófobos, racistas, somando aí meia dúzia de sete ou oito bravatas, tudo isso temperado com muita pirotecnia verbal, tá pronta a receita de Ovo Messiânico da Serpente, uma iguaria degustada com alegria pelas legiões que apoiam esse tipo de sandice.

Eu, curioso que sou, acabei premiado com a oportunidade de ver de perto como age a máquina de desinformação, como é que se instala o vírus da insensatez, ao participar de um grupo local no Whatsapp. Ao longo de algumas semanas, pude observar a estratégia de ocupação e disseminação de conteúdos variados que não servem a nada além de exaltar o atual status quo. Melhor ainda foi observar como esse movimento é incentivado e organizado, porque isso é um espetáculo dantesco, mas de enorme valor pedagógico.

Como em várias outras cidades do Brasil, o fenômeno Bolsonaro não serviu pra muita coisa, além de dar voz a um grupo que já andava sumido da realidade brasileira, a turma do pensamento mediano. Aquele pessoal que acredita piamente em correntes de rede social, mas que duvida da ciência, e que por sinal é a mesma turma que elegeu o atual ocupante da presidência. Esses grupos, depois de alguns anos desaparecidos porque já não havia mais lugar onde pudessem destilar seu veneno, voltaram a se encher de orgulho, pois tinham na figura do então candidato Bolsonaro alguém que falava exatamente o que eles gostam de ouvir. Mais ainda, repetia o que eles mesmos gostam de vociferar, com aquele entusiasmo tradicional de quem não tem nada útil a dizer, mas quer falar em voz bem alta, simulando conteúdo.

Essas pessoas ainda acreditam, apesar de a História mostrar o contrário, que estamos vivendo sob a sombra do comunismo comedor de criancinhas, que os socialistas vão invadir sua casa e transformar seu carro num bem público, isso sem falar no enorme risco de transformar as pessoas em ateias, tudo isso contra a vontade, é claro. Acreditando nesse bicho papão e com medo de assombrações políticas nas quais nenhum cérebro normal crê, essa turma encontrou em Bolsonaro o líder ideal, e de fato, para esse tipo de eleitor, nada poderia ser melhor. Afinal, ele lideraria a resistência contra o PT, contra o Bolsa Família, contra a Globo e contra o que mais fosse necessário para transformar novamente o país num paraíso de “moralidade”. O centro motor desse movimento é colocar o crachá “pela família, pela moralidade e pela honestidade” sem, necessariamente, precisar assumir compromisso com isso.

Eleito em grande parte pela absoluta ignorância de seus eleitores acerca de quem e do que estavam elegendo, o presidente não precisou de muito tempo para perceber que não é capaz de resolver qualquer problema desse país, exceto os seus e os dos seus. Para que isso continue acontecendo, é vital a permanência dele na cadeira de presidente. É o poder do cargo e a liturgia do sistema que garantiriam o manancial infinito de impunidade e liberdade de que ele e os seus confrades precisam. Para manter-se presidente e preservar o verniz de democracia que ainda resta, o caminho é a urna. E é aqui que entra a milícia digital. Impossibilitado por algum resquício de lógica, mas principalmente pela existência da oposição, motivado ainda pela derrocada de Trump, aquele ser ignominioso que parece despertar os instintos mais primitivos no íntimo do presidente brasileiro, eis que Bolsonaro já prepara o terreno para vencer em 2022, seja na urna ou sobre ela. Vamos, aqui, manter o foco na tentativa supostamente honesta de vencer.

Grupos de pessoas que se dedicam diuturnamente a impedir qualquer diálogo inteligente – o que inviabiliza completamente a difusão das ideias bolsonaristas – são destacados por seus líderes políticos, infiltrados nas discussões gerais e, aos poucos, a manobra de ocupação ganha espaço. Ocupando o espaço e tentando controlar a narrativa, esses grupos se dedicam incansavelmente a difundir todo e qualquer conceito que direta ou indiretamente favoreça o discurso bolsonarista.

No grupo a que me referi acima, os primeiros movimentos foram orquestrados por pessoas ligadas a pensamento conservador, tradicionalista, que pelo óbvio ululante congregam nos grupos de direita locais. A primeira ação concreta é sempre desqualificar o interlocutor, que é sempre transformado em “esquerdopata”. Não raro, basta que entrem nas discussões públicas e já se referem aos que pensam diferente como pessoas que querem viver a custa de favores de governo, dependentes de programas de transferência de renda ou mesmo desocupados por opção própria, ainda que esses termos não passem perto da realidade. A ideia aqui é criar um estereótipo que não transmita confiança, e por isso tentam criar essa atmosfera em torno de quem não bate palmas para o palhaço do Planalto fazer seu show. Apontando essas características, buscam motivar outras pessoas a igualmente se manifestarem, ecoando as acusações. Logo, quem é a favor de isolamento social, de acordo com a milícia digital bolsonarista, é evidentemente alguém que é contra trabalhar, é contra a economia. Fazem isso e conseguem apoio de pessoas menos esclarecidas, que automaticamente começam a culpar o alvo errado pela economia estar em frangalhos e os empregos estarem evaporando.

Após conseguir esse tipo de apoio, a milícia digital, sempre muito organizada, mantém o espaço ocupado através da disseminação de material que favoreça as intenções do clã Bolsonaro. A cada intervenção bolsonarista, os demais membros da célula interagem e amplificam o debate em cima do conteúdo apresentado. Simulando o efeito manada, atropelam vorazmente qualquer voz dissonante. É constante para essas pessoas a necessidade de ligar qualquer discordância ao espectro político da esquerda. Qualquer voz contrária é virtual e massivamente remetida ao Partido dos Trabalhadores e à figura do ex-presidente Lula, constante nos discursos dos bolsonaristas como exemplo vivo do que não se deve fazer. Essa estratégia reforça, para o cérebro mediano, a imagem da oposição como sendo a turma que quer o PT de volta. É simplório, mas funciona, muito baseado no fato de que uma leitura profundamente racional da conjuntura atual seria desastrosa para os objetivos de quem pretende apenas controlar a narrativa e usá-la a favor do atual governo. Colocar a culpa no PT para todo e qualquer problema é uma saída padrão para os envolvidos nesse processo, e garante que as grandes massas, cujo conhecimento de causa é muito pautado no que diz a Rede Globo, atendam ao canto da sereia. Ou ao toque do berrante, como se pode observar.

Criando ambientes hostis aos “inimigos”, a milícia mantém o passo, ocupando o espaço com narrativas favoráveis ao governo, como na difusão de mentiras sobre a ciência, ilações diversas e muita, muita desinformação, não descuidando um minuto sequer da estratégia de demonizar a oposição. E daqui por diante, a alquimia se faz, o debate é transmutado num rosário de fake news. Tudo isso não funcionaria, evidentemente, se o pano de fundo não fosse a adoração dessas pessoas ao sujeito que está presidente, e tudo aquilo que ele fala, representa e personifica.

O passar dos dias apenas acelera o processo, e tão logo estão à vontade, os “influencers” já promovem sessões diárias de charlatanismo sobre vacinas, difusão de desinformação sobre a oposição e coisas afins. Aos poucos, a própria turba que não percebeu a manipulação já propõe pautas de discussão tais como tirar a população de rua de onde estejam, carregando os tons na estigmatização, culpabilização generalizada de servidores públicos pelos problemas que o governo cria e mantém, ode ao armamentismo e a eterna cantilena “E o PT? E o Lula?”.

O arremate dessa atuação é a cereja do bolo: campanha eleitoral. Uma vez que o território esteja ocupado, começa a campanha velada de possíveis candidatos que atendam aos requisitos tão decantados até aqui: sejam pessoas conservadoras, tradicionais, tementes ao deus que convém ao rebanho. Esse é o objetivo, a criação de um palanque virtual onde sejam louvados os representantes da direita sem coragem para se assumir extrema, e onde se possa livremente demonizar qualquer outra alternativa. Todos com um único objetivo, que é construir cenários que pareçam apolíticos, mas com forte tendência à direita, e todos unidos em torno do homem que alterna entre o leite condensado, o berrante e o Queiroz.

Observar de perto a ação de bolsonaristas é sempre interessante, porque ajuda a entender como tantos alemães aceitaram o Reich de bom grado. As táticas que usam e o verniz que ostentam são fatores a observar com muita atenção, para que o ovo da serpente volte para o limbo de onde jamais deveria ter saído, e para onde os democratas de verdade certamente vão mandá-lo.

André Santos

André Santos é funcionário público

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