Meses a fio a matutar, urdir as palavras sobre mais uma viagem à minha cidade natal e as artes de Márcio, meio assim sem que a pena se sentisse à altura, até a língua indecisa, preciosa imprecisão: empinar pipas ou soltar papagaios, eles mesmos já livres a adejar no ateliê do Artista. Solto o sarilho, o balde espadana água fria no fundo da cisterna, puxo a corda, o fio das lembranças: haverá como escapar da infância, do tempo, das recordações, das lembranças? Talvez por isso haja tantas ampulhetas por ali, no ateliê, a nos cercar, implacáveis, sem nem o consolo de um tique-taque.
Era para ser uma carta aberta, por via aérea, telégrafo sem fio, pombo-correio: ei-lo, o pássaro, planando sobre a linha do horizonte a traçar seu rumo, a procurar uma linha de prumo para sua arte de funâmbulo, nefelibata, anemóbata. Escrever essas mal traçadas linhas sobre seus papagaios, meu amigo, você que os faz voar mesmo quando são de metal, adejando como borboletas azuis, e não só azuis, pela sua ermida, brotando das telas como gêiseres em cores, alígeros e soltos no ar ainda que presos entre molduras, confesso, ralou os joelhos de minha alma de calças curtas, e sem mertiolate para fazer arder.
Visitaram-me as musas após minha última visita, quando admirei sua bela fiandeira, ao mesmo tempo moira e fada, entretecida com teares e lançadeiras, fiando na linha do tempo cordões umbilicais que nos uniram em nossas mães e tias tecelãs na fábricas de pano da Renascença ou na Cachoeira Grande, bordando moças que brotam da neblina matinal densa como nuvem de algodão, em bicicletas de moças, para atender o já decantado apito de uma chaminé de barro, pois, em Pedro Leopoldo, nas frias e enevoadas manhãs daquele tempo, ia-se na direção da fábrica de tecidos, de um lado, ou da fábrica de cimento, do outro, no traço da rua principal.
Mas tentar descrevê-la, a fiadeira, lá a reunir num só feixe todos os fios, como fará um dia aquela outra que carrega a gadanha, é andar no fio da navalha (nunca consegui manejar o alfange, e ainda hoje, posso ver meu pai, barbeiro de ofício, segando no gramado, para minha grande admiração. Até na escrita aquela ferramenta me atrapalha, já que os dicionários não decidem se devo escrever com j ou g). Pois a mim ela evoca tessituras que serão, para outros, outras. Vermeer e sua bordadeira, suas sublimes mulheres santificando miúdas tarefas do cotidiano doméstico. Quadros de Vermeer entram na minha lista de coisas que fazem a vida valer a pena, como aquela que Woody Allen fez em Manhatan.
Ou a operária tensa, esticada, explorada, oprimida, em movimento como se tentasse escapar. Ou nada disso, apenas aquilo que opera a obra de arte quando é arte, transcende e acende a vontade de transcender. É com as linhas dela que vamos soltar papagaios hoje. Ao longo da linha do trem, correndo com a carretilha nas mãos. Para ter mais graça, sejamos pobres (mas não miseráveis); assim, não haverá farinha de trigo e faremos grude com farinha de mandioca. Ah, mas fica pesado demais. O bambu para as varetas está ali, e você, o Artista, desde sempre as cortará leves, lisas e equilibradas. Alguns centavos para duas folhas de papel de seda sempre se pode arranjar, e sua mãe, meio a contragosto, te dará um carretel da linha de algodão da mais fina, número 20, não sei, acho que não os numeram mais. Sonhe cordonê, mas é pesado demais, não adianta não arrebentar se o papagaio não decolar. Sua sorte é que é tempo de baba-de-boi, na falta de goma arábica, vai colar perfeitamente.
Corte um pedacinho de papel em forma de ferradura e coloque na linha enquanto ele, mudado em ser espacial, sobe em maravilha: é como mandar um telegrama para o céu. Quando arrebentar o fio, fique firme, não perca a linha, não chore. Corra atrás, será inútil, mas faz parte. Acompanhe com o olhar resignado a queda colorida, aprenda suas primeiras perdas e despedidas.
Ainda que seja triste, é verdadeiro, como toda arte que é, em essência, verdade, e não há como não dizer: era um mundo em que soltar papagaios não decapitava pessoas.
Na faculdade de Filosofia, a professora de cultura grega gostava de ensinar que as musas são filhas de Mnemosyne.
A Deusa da Memória.