O suflê de Eunice Paiva e a maldição do salpicão

O suflê de Eunice Paiva e a maldição do salpicão

Gosto muito da coluna “Cozinha Bruta”, que o articulista/cozinheiro Marcos Nogueira refoga na Folha de São Paulo. Os assuntos são saborosos e o texto bem temperado, com pitadas de fait divers, em especial curiosidades históricas e políticas.

Sendo assim, o filme “Ainda estou aqui” entrou no cardápio da semana em que Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro. Nele, pontifica o suflê de Eunice Paiva, vitoriosamente interpretada pela atriz. O suflê seria o almoço servido no dia em que agentes da repressão sequestraram seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva.

Ocorre, diz Nogueira, que o suflê não era um suflê. Era uma musse de salsão —ou aipo, nome que o vegetal recebe no Rio. E a receita era bem peculiar: salsão cru, picles, ricota, maionese e gelatina de limão.

A mistureba, que provocaria engulhos em paladares hoje movidos a chia, castanhas e batata doce, na verdade expressa as vicissitudes de seu tempo, brilhantemente descrito pelo articulista/cozinheiro. Diz ele que, “da década de 1960 à de 80, a indústria alimentícia operou uma lavagem cerebral em massa. Convenceu populações inteiras de que misturas químicas e produtos enlatados eram o futuro, o caminho do progresso da humanidade.

Havia um sentimento de que as fábricas produziam alimentos melhores do que os naturais. Tem a ver com a inserção das mulheres no mercado de trabalho, sem poder abrir mão das tarefas domésticas: faltava-lhes tempo para cozinhar, e tais atalhos pareceram convenientes demais”

Foi assim que receitas de família foram incorporando estranhos elementos recém-criados pela indústria como gelatina, salsichas, presuntadas, sopa em pó (quem não se lembra do patê de creme de cebola?), ketchup, leite condensado (algo que jamais seria encontrado no nosso dileto pudim de gabinete, por exemplo).

A deliciosa crônica de Marcos Nogueira me lembrou a maldição do salpicão, prato que, em passado recente, odiei com todas as minhas forças.  Ou, pelo menos, um certo tipo de salpicão. Tal sentimento teve origem nas minhas andanças como repórter, quando, volta e meia, me via nos nortes de Minas, em especial nos vales do Jequitinhonha e Mucuri. Ali, frequentemente, era convidada a almoçar por velhos e novos amigos em mesas de todas as condições sociais. Na refeição, eles me ofereciam bem mais do que a comida, que chegava à mesa acompanhada de simpatia e acolhimento.

Em tais lugares, na minha experiência, a escassez costuma ser diretamente proporcional ao sabor da comida na mesa. E dá-lhe o franguinho magro que, minutos antes, ciscava no quintal, e, mergulhando no prato, tomava gosto de lembrança boa; o feijão andu envolvido em farinha e toucinho defumado, o tomate rubro das hortas mirradas em muito sol e até mesmo a batata frita em banha de porco, com uma textura que nem chefs mais estrelados conseguiriam reproduzir com alguma fidelidade.

Pois bem. Certa feita, numa dessas viagens, sou convidada a almoçar na casa de um político, conhecido por sua habilidade em receber – daí inclusive vinha boa parte dos votos que lhe garantiam, até então, mais de duas décadas no cargo. A dona da casa se esmerou, vestindo a mesa com a melhor toalha de renda e suas louças mais impecáveis. Tanta boniteza me atiçou e aqueceu… afinal, prenunciava o delicioso franguinho, ou quem sabe, uma costelinha com nacos de milho verde? Talvez uma barriga de porco estalando qual torresmo, descansando em uma confortável farofa de ovos?

Qual não foi a minha surpresa – e visível decepção – quando vi tomar a mesa o maldito salpicão, última novidade nas melhores cozinhas sertanejas. Orgulhosa, a esposa do parlamentar me apresentou o prato em que algum pedaço congelado de frango se aglomerava a ervilhas e milhos em lata, presuntos, azeitonas, salsichas e muita maionese. Misturadas à gororoba, jaziam aquelas batatas palhas de supermercado, que, tenho certeza, são fritas em óleo diesel.

Comi, claro. Mas com aquela infinita tristeza das oportunidades perdidas. Como aquele trem tinha ganho o caminho do sertão? E ocupado, com sua opulência enlatada, o lugar das coisas simples e, por isso mesmo, maravilhosas?

Só que, para quem não sabe, a Terra é redonda e gira em torno do sol. De lá para cá, uma longa trajetória juntos aos salpicões suavizou a revolta e até mesmo promoveu a reabilitação daquele que, se não considero uma iguaria, hoje é indispensável em datas emblemáticas, especialmente o Natal.

A receita, naturalmente, teve adaptações de um mundo em constante evolução… e das exigências que, acredito, devem ter chegado também à casa do tal político e seus descendentes. Hoje, faço o salpicão com carinho e muitas ressalvas.

Para começar, o frango tem que ser peito e comprado como tal, de preferência fresco e com pele. Deve ser cozido em temperos que lhe proporcionem o melhor sabor possível e gerar uma redução de caldo que, esta sim, fará o sabor do salpicão. A pele aí será descartada, mas, se o colesterol estiver em dia, pode ser batida em liquidificador e fazer parte do caldo.

Voltemos à receita. Junto à carne, se amalgamam cenouras e vagens cortadas finas e branqueadas, maionese de boa qualidade e, por que não, algumas colheres de creme de leite e passas. Afinal, é Natal! Por cima, sem se misturar, reina a batata palha, feita em casa e frita em óleo de girassol.

Fica muito bom. Mas, sinceramente, muito longe daquele sabor de gentileza que o franguinho ensopado dos quintais do Jequitinhonha oferecia naqueles tempos. Comida boa, que dava uma saudade danada e instigava a voltar.

Bianca Alves

Criadora e editora do projeto AQUI PL, é formada em Comunicação Social pela UFMG e trabalhou em publicações como os jornais O Tempo, Pampulha, O Globo; revistas Isto é, Fato Relevante, Sebrae, Mercado Comum e site Os Novos Inconfidentes

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