O Cine Marajá anuncia para hoje

O Cine Marajá anuncia para hoje

Texto de Pedro Lúcio Lithg Pereira

Nos anos 60 e 70 do século passado, Pedro Leopoldo era uma cidade baixa. A maioria das construções, casas unifamiliares, era de um só andar, ao rés do chão. Havia poucas casas de dois andares, alguns sobrados na rua principal e os edifícios mais altos raramente ultrapassavam os três andares. De qualquer canto da cidade, podíamos escutar com relativa nitidez o apito da fábrica de tecidos às cinco da manhã, à uma da tarde e às nove da noite, o relógio carrilhão da Igreja Matriz em horas inteiras, meias e quartos e o anúncio do Cine Marajá, mais ou menos às cinco ou seis da tarde, informando ao público o programa do dia.

O apito da fábrica e o carrilhão da Matriz eram meros recordatórios do tempo. Porém, o anúncio do Marajá, que sugeria com que preencher o tempo, chamava a nossa atenção. Sempre iniciava com a frase acima, que intitula este texto, seguida da indicação do filme em cartaz para as sessões do dia. De qualquer forma, não era difícil saber a programação do cinema, afinal a cidade era pequena e distribuíam-se cartazes do programa em curso na rua principal, amarrados aos postes da rede elétrica, estrategicamente posicionados desde o campo do Pedro Leopoldo à praça da Matriz.

Ainda na mais tenra idade, nos anos de 1960, frequentávamos a sessão matiné aos domingos, às 10 da manhã. Exibiam-se filmes de aventura, como a saga de Tarzan com Johnny Weissmüler e, posteriormente, com Victor Mature, as divertidas comédias de Jerry Lewis ou as alegres e pueris aventuras de Mazzaropi, cuja filmografia é uma das mais longas da história do cinema nacional. Nessas sessões matinais, assistimos no Marajá aos Clássicos Disney como “Branca de Neve e os Sete Anões” (Snow White and the Seven Dwarfs), “Bambi”, uma das obras primas da produtora, ou “101 Dálmatas” (101 Dalmatians). Posteriormente, já nos anos 70, vimos ainda da Produtora Disney os filmes “Fantasia” e o antológico “Mogli – O menino Lobo” (The Jungle Book). Mogli trazia sequências musicais memoráveis como a do urso Baloo fazendo a apologia do ócio e da despreocupação, a do orangotango rei Louie tentando persuadir o menino lobo a ensinar-lhe a fazer o fogo e a graciosa marcha militar da manada de elefantes que nos remetia a José Issa Filho e a sua “meninada” que, sem perder o ritmo, cruzavam a cidade de ponta a ponta, hup, two, three, four… keep it up, two, three, four!

Antes da exibição do filme em cartaz, projetavam-se séries com capítulos curtos, das quais recordo “O Terror dos Espiões” (Spy Smacher). Ambientada na Segunda Guerra Mundial, essa série, saída dos comics, foi pioneira na temática de inteligência e espionagem político-militar internacional e precursora da saga 007, inspirada, por sua vez, na Guerra Fria. A propósito, vimos na tela do Marajá todos os filmes protagonizados por Sean Connery, on Her Majesty’s Secret Service, único e insubstituível “Bond, James Bond”.

Ainda nas matinês, assistimos aos grandes westerns da época como o “El Dorado”, fitas inolvidáveis de décadas passadas como “No Tempo das Diligências (Stagecoach) ou “Onde Começa o Inferno” (Rio Bravo). E não poderia omitir uma das grandes obras clássicas do faroeste, “Os Brutos Também Amam” (Shane), considerada pela crítica americana como a mais icônica do gênero em todos os tempos e que nos brindou a programação do Marajá na matiné de um domingo qualquer dos anos 60 do século passado.

Naqueles anos, o Cine Marajá oferecia sessões vespertinas, às duas da tarde, aos sábados e domingos. Nessas sessões vimos a premonitória comédia nacional “O Homem que Roubou a Copa do Mundo” e a divertidíssima comédia americana “Deu a Louca no Mundo” (It’s a Mad Mad Mad Mad World). Assistimos ainda, nas sessões vespertinas, filmes tão diversos como “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” e o dramático “No Caminho dos Elefantes” (Elephant Walk), ou ainda a comédia de aventura “Hatari!” e o sombrio “O Caso dos Irmãos Naves”, uma das grandes obras do cinema nacional, baseado em fatos reais que impacta não só pela dureza e brutalidade das cenas de tortura, as quais os protagonistas foram submetidos, na realidade e na ficção, mas, sobretudo, pelas cegueira e truculência do inquérito judicial que conduziu a um dos mais graves e irreparáveis erros da Justiça brasileira.

Nas sessões habituais, naquela época, o Cine Marajá exibiu as grandes e épicas produções hollywoodianas dos anos 50 e 60, para regalo dos espectadores cristãos e profanos, como os clássicos “O Manto Sagrado” (The Robe), “Ben-Hur”, “Spartacus” ou “Quo Vadis?”. Exibiu, igualmente, obras dramáticas de corte épico, ambientadas, entretanto, na era moderna, filmes como “Lawrence da Arabia” (Lawrence of Arabia), “Dr. Jivago” (Doctor Zhivago) ou “A Noviça Rebelde” (The Sound of Music).

Tampouco poderia me esquecer das chanchadas da produtora brasileira Atlântida Cinematográfica, cujos filmes se exibiam com frequência no Cine Marajá, como os clássicos “Esse Mundo é um Pandeiro” e “Carnaval no Fogo”. As chanchadas eram um gênero nacional de comédias que, além da temática recorrente do carnaval, parodiavam as grandes produções hollywoodianas. Há mais de seis décadas, assistimos no Marajá os filmes, originais e sátiras, “Nem Sansão, Nem Dalila”, que parodiava o épico de Cecil B. DeMille, “Sanção e Dalila” (Samson and Dalila) ou “Matar ou Correr” versão burlesca de “Matar ou Morrer” (High Noon) um dos grandes e inesquecíveis clássicos do gênero western estrelado por Gary Cooper.

As chanchadas, no final dos anos 60, foram substituídas por um subgênero genuinamente nacional, as pornochanchadas. Mantinham o tom de comédia caricata das chanchadas, recicladas com um conteúdo erótico que, sem embargo, não ultrapassava os limites porno soft-core. Assistimos filmes significativos dessa fase do cinema nacional no Cine Marajá, como “Memórias de um Gigolô”, “A Viúva Virgem” ou “Ainda Agarro essa Vizinha”, e outros nem tão significativos, porém representativos do subgênero como “Os Paqueras”, “Um whisky antes, e um cigarro depois” ou “A Super Fêmea”.

À parte as chanchadas e as pornochanchadas, o cine Marajá nos presenteou com obras significativas e fundamentais do cinema brasileiro, as quais recordo haver visto em sua tela, como “O Cangaceiro”, “Rio, 40 Graus”, “O Pagador de Promessas”, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1962, “Assalto ao Trem Pagador”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Macunaíma”, “Quando o Carnaval Chegar”, “Vai trabalhar Vagabundo”, enfim uma infinidade de filmes importantes e representativos do cinema nacional mais ousado e comprometido.

Mais que a oferta cultural que proporcionava, o Cine Marajá era um notório ponto de encontro. Nas matinés, antes de acudir à sala de projeções, havia um comércio, ou melhor, um escambo de gibis entre os espectadores. O valor das revistas para a troca se apreciava pelo estado do exemplar, a coleção a que pertencia e a temática do número. Uma revista em bom estado valia duas em estado razoável e um bom exemplar de Mandrake podia valer duas de Fantasma ou até três de Tarzan. Havia bons escambadores e um deles era, sem dúvida, Joanes Melo. Era perspicaz e paciente para encontrar um bom escambo. Às vezes, deixávamos as nossas revistas ao seu encargo para as negociações, das quais sempre saíamos ganhando.

O cinema possuía ainda uma lanchonete, com um desenho arquitetônico moderno que lembrava as naturais curvas nas obras de Niemeyer. Nas tardes dos sábados e domingos, ainda me lembro bem, antes e depois das sessões era concorrida a frequência à lanchonete, cujos pedidos mais populares, creio recordar, eram o americano banana split, com três sabores, a tradicional vaca preta, um batido de sorvete de baunilha com Coca-Cola, e a vaca roxa, o mesmo batido com Grapette, um refrigerante de uva habitualmente consumido no país.

Desde os anos de 1960 até a metade da década seguinte, éramos assíduos espectadores do Marajá. A partir de 1975, já universitários, trocamos o cinema de Pedro Leopoldo pelas salas da capital, sem deixar de assistir um ou outro filme no Marajá até os anos de 1980. No início da década de 1970, ainda meio adolescentes, Alan e eu íamos ao cinema duas vezes por semana. Aos domingos, era infalível, independente do filme em cartaz. De qualquer forma, o Marajá possuía boa programação, que atendia diversos gostos. Em sua tela cinemascope de 70mm, a segunda instalada em Minas Gerais depois do Cine Amazonas, em BH, assistimos filmes polêmicos como o personalíssimo e soberbo “O Evangelho Segundo São Mateus” (Il Vangelo Secondo Matteo), que encheu o cinema de equivocadas beatas, ou filmes antibélicos bizarros, divertidos e musicais como, respectivamente, “Alice’s Restaurant”, “M.A.S.H.”, e o inesquecível “Hair”, uma adaptação do famoso musical da Broadway. Para um musical, a trilha sonora de Hair deixava, contudo, um pouco a desejar e dificilmente podemos considerá-la representativa dos anos 70.

Em 1971, assistimos “O Planeta dos Macacos” (The Planet of Apes), um filme inquietante que, à parte a perenidade e a grandiosidade da obra, protagonizada pelo ator Charlton Heston, feria as nossas sensibilidades ontogênicas e, principalmente, filogênicas. À saída daquela sessão no Marajá, não entrava em nossas cabeças a possibilidade de outra espécie animal dominar a Terra e os humanos. Porém, ainda que remotíssima, podia ser uma possibilidade, afinal a seleção natural, preponderante, segue inabalável o seu curso e em algum momento da História pode ser que outra espécie da ordem Primata nos arrebate o topo da cadeia trófica.

Ainda naqueles anos o Cine Marajá nos proporcionou outra grande obra de ficção científica igualmente inquietante, “A Última Esperança da Terra” (The Omega Man). Um filme que também dava o que pensar, pois a humanidade havia sucumbido pela ação de uma pandemia bacteriológica resultante da guerra biológica ficcional entre a URSS e a China. Os humanos sobreviventes desenvolveram mutações as quais não lhes permitiam viver à luz do dia. Desde as sombras, perseguiam o cientista Robert Neville, interpretado também pelo veterano Charlton Heston, sobrevivente da catástrofe e, para os mutantes, representante de uma ciência nefasta que havia aniquilado a humanidade.

De um dos seus 900 lugares, há mais de cinco décadas, desfrutamos no Marajá de grandes obras do cine bélico mundial como “Os Canhões de Navarone” (The Gans of Navarone), “Os Doze Condenados” (The Dirty Dozen) ou “Patton, Herói ou Rebelde” (Patton). O Marajá ainda nos brindou com uma das grandes obras do gênero, o filme nipo-americano “Tora! Tora! Tora!”, um filme histórico e honesto em ambas as perspectivas do conflito entre americanos e japoneses.

Tivemos ainda a oportunidade de ver na tela do Marajá, nos anos de 1970, obras definitivas do western moderno, como alguns dos filmes dirigidos por Sam Peckinpah. Desse emblemático diretor norte-americano, que utilizava com grande habilidade criativa a câmara lenta nos mais espetaculares efeitos especiais, assistimos obras fundamentais, como “A Morte não Manda Recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Meu Ódio Será Sua Herança” (The Wild Bunch), ou “Pat Garrett e Billy The Kid”.

Ainda no gênero western moderno assistimos obras imprescindíveis como “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), “Bravura Indômita” (True Grit), “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won), “Dois Homens e um Destino” (Butch Cassidy and Sundance Kid), “Pequeno Grande Homem” (Little Big Man) e, por suposto, “Um Homem Chamado Cavalo” (A Man Called Horse).

Assistimos, igualmente, filmes significativos do subgênero western spaghetti, dirigidos pelo célebre diretor italiano Sergio Leone, como os filmes “Por um Punhado de Dólares” (A Fistful of Dollars), “Por Uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollari de Più), “Três Homens e um Conflito” (The Good, the Bad and the Ugly), “Era uma Vez no Oeste” (Once Upon a Time in the West) e a obra prima “Quando Explode a Vingança” (Duck, You Sucker), cuja belíssima e inolvidável trilha sonora de Ennio Morricone é uma das grandes referências musicais do cinema universal de todos os tempos.

Do mesmo subgênero, assistimos ainda um sem-número de filmes que, na mesma época, se projetaram no Marajá, dos quais podemos destacar “O Dólar Furado” (Un Dollaro Buccato), “Django”, “Chamam-me Trinity” (Lo Chiamavano Trintá), “Trinity Ainda é Meu Nome” (Continuavano a Chiamralo Trintá), ou ainda “O Estranho Sem Nome” (High Plains Drifter).

Entre outros gêneros, vimos na tela do Marajá filmes imprescindíveis e fundamentais na cultura cinematográfica de qualquer cinéfilo, como “Barbarella”, de ficção científica com uma jovem e exuberante Jane Fonda; “Bullitt”, um cult policial e de ação, com o mítico Steve McQueen; o cuidadíssimo e perfeito “Romeu e Julieta” (Romeo and Juliet) de Franco Zeffirelli; “Perdidos na Noite” (Midnight Cowboy), outro cult, com um dilacerante realismo e uma belíssima trilha sonora; “Sem Destino” (Easy Rider), um dos mais significativos road movies americano da cultura pop; o sangrento “Quando é Preciso Ser Homem (Soldier Blue), que trazia, no entanto, a nossa belíssima musa, Candice Bergen, em pleno esplendor; “Woodstock – Três Dias de Paz, Amor e Música” (Woodstock), uma das maiores expressões livres do rock in concert; “Billy Jack”, um filme independente, não obstante, um dos célebres cults da contracultura; e ainda “Operação França” (French Connection), um dos pioneiros na temática do narcotráfico internacional; o eletrizante e veloz “As 24 horas de Les Mans” (Les Mans); o clássico noir “O Passado Condena” (Klute), com ideias conspirativas como pano de fundo; o enternecedor “Houve Uma Vez Um Verão” (Summer of ‘42); o angustiante “Amargo Pesadelo” (Deliverance); o inesquecível “Irmão Sol, Irmã Lua” (Brother Sun, Sister Moon), outra obra perfeita de Franco Zeffirelli; e “Papillon”, que assombra com uma extraordinária atuação de Steve McQueen acompanhado por Dustin Hoffman.

Vimos, igualmente, obras clássicas do cine europeu artístico como “Satyricon de Felilini” (Fellini – Satyricon), “Decameron” (Il Decameron), “Os Contos de Canterbury” (I Racconti di Canterbury), obras memoráveis como “Um Homem e Uma Mulher” (Un Homme et Une Femme), com a brasileiríssima bossa nova na trilha sonora de Vinicius de Morais e Baden Pawell. Assistimos ainda filmes raros, intimistas, pouco divulgados entre o grande público, como “Uma Menina Complicada” (Una Ragazza Piuttosto Complicata), que trazia no elenco Florinda Bolkan, musa do cinema novo e a nossa atriz mais internacional, num filme ousado para os cânones morais da época e que arrepiava os espectadores mais conservadores.

Assistimos ainda filmes de terror como o assustador “O Bebê de Rosemary” (Rosemary’s Baby) ou o terrorífico “O Exorcista” (The Exorcist) e outros nem tão assustadores tampouco terroríficos como “Blacula – O Vampiro Negro” (Blacula), a comédia de terror “Matar ou Não Matar” (Theatre of Blood) ou a série Drácula protagonizado pelo ator britânico Christopher Lee, eterno vampiro, com filmes como “O Vampiro da Noite” (Horror of Dracula), “Drácula – O Perfil do Diabo” (Dracula Has Risen from the Grave) ou “Dracula no Mundo da Minissaia” (Dracula AD. 72).

Em 1973, com a projeção do filme “A Filha de Ryan” (Ryan’s Daughter), o Marajá inaugurou a reforma na aparelhagem de som. Rodado em locações situadas entre profundos alcantilados e impressionantes praias na península de Dingle, na Irlanda, a nova aparelhagem estereofônica nos permitiu desfrutar, com assombrosa nitidez, do murmúrio incessante das ondas do mar na praia de Inch, captado pela sutil sensibilidade de Maurice Jarre.

Com a nova aparelhagem de som, podíamos escutar prazerosamente nos momentos que antecediam as sessões temas musicais, marca do cinema, como “A Summer Place” (Percy Faith) da trilha sonora do filme “Amores Clandestinos” (A Summer Place), ou “Exodus” (Ernest Gold) tema principal do filme homônimo. Não obstante, eram os anos 70, o auge do rock’n roll, e escutávamos amiúde canções emblemáticas como Crimson and Clover, de Thommy James & The Schondells, baladas como Oh Darling e All You Need Is Love, dos Beatles, ou canções icônicas como The House of the Rising Sun, com Eric Burdon & The Animals.

O Cine Marajá possuía dois potentes projetores de carvão ativado que, às vezes, durante a alternância entre eles, se não estivessem devidamente sincronizados, a fita se interrompia momentaneamente, tempo suficiente, entretanto, para que os expectadores mais afoitos protestassem com expressões pouco respeitosas, não obstante, jocosas do tipo “turco ladrão”, “turco sem vergonha”, e exigiam veementes a devolução do ingresso. Às vezes, se Seu Edson estivesse presente no recinto nesse momento, acendia as luzes da sala, subia ao palco e passava um memorável sabão na turma impaciente que mal-educadamente não dava, entretanto, a menor bola àquela lengalenga. Em seguida, apagavam-se as luzes, a sala submergia outra vez no mais profundo e completo silêncio e os fotogramas retomavam solenes à rolagem na majestosa tela de 70mm, indiferentes aos altercados anteriores, que não eram mais que uma diversão extra na sessão em curso.

Como espaço multimeios, o Cine Marajá estava bem integrado à comunidade. Acolhia com frequência eventos culturais ou comemorativos, formaturas acadêmicas, celebrações comunitárias. Possuía um amplo palco, camarins e a infraestrutura suficiente ao suporte de obras de teatro, musicais e espetáculos diversos. Apresentou nos anos 60, o célebre show de Vicente Celestino que abarrotou a sala e, na mesma época, apresentou “ao vivo” o elenco da telenovela “O Direito de Nascer”, com Amilton Fernandes à cabeça, acompanhado por Guy Loup, Nathalia Timberg, Isaura Bruno e José Parisi. Associada à popularização das tevês nos lares brasileiros, foi um dos primeiros grandes êxitos da telenovela no país. O alcance nacional obtido especialmente por essa telenovela, alentou os artistas centrais da trama a percorrer, em peregrinação, os mais recônditos rincões do país numa confusa e estranha exibição que confundia as plateias menos ilustradas os limites de realidade e ficção.

O Cine Marajá ainda trouxe a Pedro Leopoldo obras do teatro de revista, um gênero extremamente popular no país até meados do século XX. Naqueles anos, exibiram-se no palco do Marajá vedetes como a rainha Virginia Lane, Wilza Carla ou Violeta Ferraz e ainda obras consagradas do teatro nacional como “O Santo e a Porca” ou “Auto da Compadecida”, ambas do inigualável Ariano Suassuna. Em 1972, se não me falha a memória, assistimos uma apresentação impecável do internacional coral da UFMG, o Ars Nova. Para os roqueiros convictos que éramos, e ainda somos, o famoso grupo vocal nos surpreendeu com temas suaves e melódicos, com coros operísticos, música barroca e do folclore nacional.

O hall de entrada do cinema era amplo, com mesas para os comensais da lanchonete e no qual se distribuíam os cartazes da programação para as futuras estreias. Estava guarnecido por duas grandes portas, uma de acesso à sala de projeção e a outra de saída, utilizada quando a frequência às sessões era numerosa. Na porta de entrada, estava sempre a postos, como um feroz leão de chácara, o icônico porteiro Miná, cuja simples presença bastava para dissuadir a galera menor de 18 anos a assistir às pornochanchadas e demais filmes não recomendados para menores de idade. Era um tipo pouco comum, de preguiçosa e sonolenta mirada, corpulento e insanamente branco, características que lhe deram o epíteto de Urso-Branco. Dava notícia de quem estava no cinema e, com extraordinária memória, sabia quais eram as preferências de lugares de muitos espectadores. Tinha uma peculiar maneira de saudar os assistentes mais frequentes e conhecidos utilizando expressões, às vezes, pejorativas. Muitos, entretanto, tomavam tais expressões com esportividade, com a mente desarmada, pois as consideravam palavras ocas e sem segundas intenções. Sem embargo, outros, sobretudo as espectadoras, as quais chamava genericamente “vaca”, lhe atribuíam com razão e, contudo, certo exagero, um comportamento além de mal-educado, misógino e machista. Porém, nem tanto à terra, nem tanto ao mar, era a sua maneira curiosa e singular de demonstrar familiaridade com os espectadores mais próximos. De qualquer forma e sem querer contemporizar, eram outros temos que, afortunadamente, vamos pouco a pouco deixando para trás.

Durante mais de seis décadas, a programação do Cine Marajá não deixou nada a desejar aos cines da capital e das grandes cidades. Como cine de rua, teve uma significativa importância na oferta cultural em Pedro Leopoldo e, consequentemente, uma notável importância na formação cultural cinematográfica de muitos cinéfilos e espectadores pedro-leopoldenses. Em sua tela, vimos grandes obras dos cinemas nacional e, sobretudo, internacional. Filmes polêmicos, enternecedores, belíssimos, estranhos, repugnantes, divertidos, cults, assim como as mais miseráveis e insignificantes obras da Pelmex.

O Cine Marajá, como a maioria dos cines de rua mundo afora, perdeu público para a tevê, para as vídeolocadoras, para a tevê a cabo, paras os cines multissalas dos centros comerciais e, finalmente, para as plataformas digitais. A contracorrente, se reciclou, se reinventou numa nova sala com apenas 70 lugares, se reformulou em cineclube e se incorporou novamente à oferta cultural da cidade. Não obstante, outros contratempos fortuitos como a recente pandemia do coronavírus e as mudanças de hábitos que, tacitamente, ensejou, destapou a ineludível realidade da completa obsolescência dos cines de rua como modelo de acesso à cultura e à informação. O Cine Marajá, em que pese a sua elevada existência e a sublime persistência, exibirá inexoravelmente “a última sessão de cinema”?

Redação

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