José Issa não era um feminista, longe disso. O machismo veio na mala de seus ancestrais quando alguns deles aqui aportaram no final dos anos 1800 e início dos 1900 – e ele, naturalmente, o herdou. Por conta disso, tivemos terríveis divergências ao longo de uma convivência que começou na infância, já que fui colega de escola de sua filha Misabel, que ele cuidava de manter longe de mim, menina levada que eu era, sem limites ou grandes etiquetas.
Um perigo, dizia Cinco Minutos, emblemático morador da rua José Viana Sobrinho, que fazia esquina com a da nossa casa, a Presidente Kennedy, hoje, graças a Deus, Cristiano Otoni, já que o mandatário norte-americano, como o próprio Pedro Leopoldo, nunca deu as caras por aqui.
Na inauguração do asfalto das duas ruas, ali no início dos anos 70, facultaram ao público uma Palavra Livre. Eu, mais do que depressa, me apresentei ao microfone. Com cerca de dez anos, não mais do que isso, iniciei meu solene discurso aplaudindo a melhoria urbana com um contundente “nós, as meninas da rua, que seremos os homens de amanhã”…O que me valeu as gargalhadas do público presente e uma observação perspicaz do já citado Cinco Minutos: “é por isso que as muié aqui manda na gente, pequena assim já diz que vai ser homem….”
Mas o assunto aqui é Zé Issa. E literatura, que foi o que nos transformou em amigos, após vários desencontros entre seu natural machismo e o meu radical feminismo desde a mais tenra infância. Afinal, se ambos éramos fundamentalistas nas questões de gênero, tínhamos em comum um gosto irrefreável pelos livros – com os quais me encanto desde os cinco anos, quando aprendi a ler nas páginas do Diário de Minas que papai assinava.
A literatura, assim como o coração, tem razões que a própria razão desconhece. Ou não seria justamente uma passagem em um de seus livros que me acordaria para as injustiças das quais foram vítimas muitas mulheres de minha terra. Ele chamou esta história, se não me engano, de “a herança dos genros”, e nela mostrou claramente como as mulheres eram prejudicadas na partilha dos bens de família.
Na primeira metade do século passado, as boas terras da região, férteis e aptas à agropecuária, eram destinadas aos filhos homens. Para as filhas, sobravam nos inventários os terrenos ruins, cheios de pedras. Quando as cimenteiras chegaram, começou a corrida a estas terras mágicas, que guardavam as jazidas de calcário. E os que se deram bem foram… os maridos das herdeiras!
Muito antes disso, porém, lembro-me de Zé infernizando minha vida de criança em Pedro Leopoldo, quando tirava a bela e mansa Misabel, que todos nós adorávamos, de nossas brincadeiras de infância ou dos passeios adolescentes de nossa turma. Sentia nele uma velada crítica à menina solta que fui, a quem meus pais permitiam o livre fruir das ruas, sem grandes preocupações com minha segurança ou reputação.
Nesta época, para surpresa minha, também o descobri como escritor nas páginas daquele livro de capa azul, o Rua de São Sebastião, que se escondia nas estantes rarefeitas, mas eficientes lá de casa. Foi o primeiro de muitos, em especial quando, bem mais tarde, mergulhei nas coisas do nosso reino, que ele descreveu como ninguém jamais o fará.
Ali encontrei o tema de uma de nossas mais ferozes discussões. Dizia ele, como sempre, que tinha nascido com Pedro Leopoldo e que tinha escrito sobre a cidade em todos os seus marcos históricos, nas datas importantes que marcaram sua trajetória. Disse, premonitoriamente, que não estaria por aqui no centenário – e olha que faltou pouco, pois o perdemos há apenas oito anos. Mas garantiu que outros escritores/redatores fariam crônicas sobre a data e citou nominalmente Marcos Freitas, Beto Braga e, se não me engano, Samuel Tadeu.
Ora, eu também escrevia crônicas. Aliás, tinha pelo menos dez anos de crônicas publicadas semanalmente no jornal O Tempo e colecionava até mesmo alguns prêmios menores por minhas aventuras no gênero. Fiquei chateadíssima e, num encontro na rua principal, esquina com a do Banco do Brasil, desabafei em seus ouvidos com tudo o que tinha direito. Disse com todas as palavras que estava terrivelmente magoada com seu descaso pelos meus escritos. “Ou você acha que escrevo muito mal ou então, e o que é pior, imagina que não estarei aqui no centenário”, brinquei, encontrando um Zé Issa atônito e sinceramente arrependido.
Posteriormente, ele insistiu em se corrigir – o que era absolutamente desnecessário, é claro. Sempre que podia, levantava minha bola em um artigo e acho até que me citou em um dos seus livros, não me lembro bem. Mas não precisava: naquele momento vi que o lapso (que eu posso ter merecido, por que não?), assim como a proteção exagerada às filhas, tinham muito mais de genético do que de ideológico. Ele se arrependeu de não me citar, eu me arrependi de reclamar com tanta veemência e nos tornamos grandes amigos desde então.
Assim como Marcos Lobato escreveu nesta série, vi que Zé Issa “transformava nossa cidadezinha em matéria literária, redimindo nossa crônica miudeza e conferindo-lhe dimensões míticas”. Lendo seus livros, me enchia de orgulho por termos Zé Issa, “um escritor de verdade que é de Pedro Leopoldo”, como o defini em uma de minhas revistas. Elogiado por Fábio Lucas, sumidade maior da crítica literária brasileira, que, por sua vez é pai do Bill, colega e amigo de Estadual Central que se tornou um percussionista famoso.
Me deixa feliz saber que o Zé sabia da minha admiração, que ele agradecia sempre que me via. Passamos a cultivar um respeito recíproco, que compensou, em meu coração, o machismo adquirido do outro lado do mundo, vindo na bagagem imigrante de sua família. Ele sabia que eu gostava dele tanto quanto gosto de Pedro Leopoldo. E vice-versa: nossa paixão inexplicável por esta cidade deve ser coisa dos loucos que escrevem para tranquilizar a alma e, assim, não brigar com o que os fere e machuca. Afinal, como brigar com uma cidade inteira? Especialmente uma cidade que a gente ama, assim como amamos seu povo e suas incríveis idiossincrasias. Neste contexto, ler os livros de Zé Issa é necessidade básica, observação a ser escrita em certidão de nascimento de qualquer pedro-leopoldense, pois ler Zé Issa é conhecer nossa cidade.
Desta maneira, nada mais natural do que, nos 100 anos da nossa cidade e nos 100 anos, nove meses e 15 dias de Zé Issa, o AQUI PL, que é o nosso livro eletrônico, abrir suas telas para elogiar, enaltecer, exaltar, louvar, ovacionar, enfim, reverenciar a cidade que amamos na figura do nosso grande escritor. Como tantos outros cronistas de nossa cidade, rendo aqui minhas homenagens ao maior de todos. Viva Pedro Leopoldo! Viva Zé Issa!