Velar e Velejar por Pedro Leopoldo, a cidade
(fragmentos subidos da fonte da vida lembrada, sobre Zé Issa)
Içar âncora, enfunar velas, acender velas e incensos, alçar do fundo da cacimba da memória a pedido de jornalista de Pedro Leopoldo, a ver o que estilha sobre a alva tela, algo além de Miná e o cine Marajá. Ajustar astrolábio e bússsola para a cidade das três moças, apaixonar-se por tais ondinas, seguir o rastro luminescente da barca de Chico Xavier, a flutuar meio aos astros em direção ao planetinha azul, como, anos atrás, o cometa de Halley, que impressionou tanto o pai do menino, então com cinco anos, que batizou o primeiro filho com o nome do astrônomo britânico, que um escrivão entendeu Halem, bom amigo dos Issa, se bem me lembro.
Jornalista tomei por licença tomar jornalista por epiceno, pois sempre houve jornalistas, na humanidade e em nossa cidade. Para não ferir susceptibilidades, ainda que póstumas, (pois houve um soit disant Jornalista de Pedro Leopoldo) deixo sem Jornalista a urbe: nos escrínios recônditos da recordação há até mesmo uma revista editada em PL, tem a ver com um certo professor Azarias (se agora me trai a memória, azar. Acho que é Azarias, isso mesmo), havia exemplares lá em casa, você sabe, na Olaria, perto do ribeirão. Por algum mistério cabalístico, sefirótico, um trocadilho na seção de humor impressionou minha retina cansada: “num poço com água, procura-se água de balde. Num poço seco, debalde procura-se água.” Quem riria disso hoje? Pelo menos eu, kkkkk, rs, lol!
Mesmerizado desde sempre pela linguagem e pelo idioma, sua plasticidade expressa no trocadilho. Hegel não disse que só é possível filosofar em alemão, como a canção de Caetano Veloso popularizou. Na sua Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik) ele afirma que o alemão é a língua mais apropriada para a filosofia, porque é plástica, dúctil, maleável, e tem muitas palavras que significam ao mesmo tempo uma coisa e o contrário dela. O mais próximo disso em português talvez fosse “revelar”, mostrar e velar ao mesmo tempo, mas, infelizmente, é uma etimologia inventada.
Eis que insta a jornalista, então vai currente calamo : vejo o velho que pergunta ao velho Artista: soprarão em nós só os ventos da memória, Zéfiro, Mistral, Simum ou Siroco? Aí aparece o menino de calças curtas e pés nus e me sussurra en parlant tout bas: decorar é saber de cor. De cor, quer dizer, de cordis, do coração. Saber de cor: par couer, pelo coração no gaulês. As gavetas da memória são abastecidas com os lençóis, colchas e fronhas do coração, às vezes ele mesmo enfronhado, coitado.
Divago. É melhor ir devagar, porque é delicado. Na minha Rolleiflex há um senhor de basta cabeleira, costeletas meio grisalhas, pele morena tipo médio-oriente, lábios e sobrancelhas grossas, contido, simpático. Talvez não fosse assim: aparece assim, como um daqueles cartazes do cinema que apareciam amarrados nos postes do centro.
O menino calça curta, desde que alfabetizado no Grupo Escolar Rui Barbosa, por Dona Anete, aquela que dava aula com uma vara de marmelo na mão, e nossos pais adoravam a professora brava, com a história dos Três Porquinhos, o que significa que minhas primeiras sílabas foram em P: Palhaço, Palito e Pedrito, aliás, o que tem issa, ou melhor, isso a ver? – sempre leu tudo que lhe caiu sob os olhos, hoje óculos, tudo mesmo, fora de brincadeira.
A cidade tinha uma biblioteca pública, e nós líamos Mob Dick e Harry Potter (certamente havia algo semelhante na época) como se fosse a mesma coisa. Muitos livros sobre a Segunda Guerra, ali pertinho. Piloto de Stuka, quem publicaria isso hoje em dia? Grande Guerra, gripe espanhola, Segunda Guerra, muitos livros sobre a Segunda Guerra, que mal acabara de virar a esquina da História, e o pendor para escrever que lhe rendeu incontáveis “santinhos” pelas composições: no terceiro ano primário um dia no sítio da professora, Dona Marina Duarte, se não falha, onde o infeliz caiu, rolou, ralou os joelhos, chorou na hora pela dor e vergonha, e, depois por ter chorado.
(sempre arrastando uma parte e tentando mandar a outra pra frente, como o antigo do que vai adiante. anos depois, já pubescentes, Pedro e o ex-menino, já iriam procurar na humilde biblioteca “O Ser e o Nada”, de Sartre, mal sabendo que a assim chamada “teologia do demônio” só seria editada em português umas quatro décadas depois, pela editora Vozes, e estaria nas prateleiras da católica Livraria Paulinas.
Então Dona Zélia empresta ao moleque esfomeado e sedento de leituras, todo o Monteiro Lobato infantil, iniciando a série de magníficos mestres da língua lusa, Professor Martinho e Carlos Alberto Reis de Paula, este arqueando os braços como se não tivesse cotovelos, enquanto recitávamos os pronomes relativos: que, quem, o qual, a qual, cujo, cuja, isso, aquilo… ôpa, esses derradeiros aí são demonstrativos, só coloquei pra ver se você estava prestando atenção. Dona Vânia Barbabela que se espantava com a facilidade do pirralho para o inglês – vai daí que houve outras encarnações uai…mon prof de français, malheuresement ‘jai oublié son nom, Dona Eneida talvez. Alexandre Pimentel, professor honorário: esta crônica, se se chamar assim, foi escrita em grande parte por eles e elas.
Mas então: talvez presenteado ao amigo com nome corruptela de nome de cometa por sua vez nome de um astrônomo nascido na Inglaterra em 1656, cai às mãos da criança devoradora de livros “Um curto e Infeliz Amor na Lapa”, de J. Issa Filho.
Confesso que não li ainda toda sua obra. O menino se vê no bazar de Dona Rachida, que vem cumprimentar com gentileza a mãe do garoto, que não sabemos se pagava aquelas contas, figura de, para o moleque, senhora de revista em quadrinhos, como Vovó Donalda ou a Dona Benta das ilustrações, cabelos grisalhos, presos atrás ou em birote, sorridente e, de repente, os “turcos” da urbe ou pólis, como queira, começam a desfilar na minha frente, estando o Império Otomano morto (depois de agonizar um século) havia relativamente pouco tempo, todo mundo daquelas terras era “turco”, não importava se libanês, árabe, sírio ou turco mesmo, na Casa Nova – o nome era esse, acho – Nagib (a criatividade para nomes parecia escassa, assim como entre os muçulmanos que se chamam quase sempre Mohamed, já que é proibido chamar um filho de Ataturk) – com o tradicional nasal avançado (devo dizer que quiseram as fiandeiras da Fortuna que eu me casasse com uma neta de libaneses, tamareira do meu jardim, oásis de meu caravançarai, de sobrenome Nahás – o pixote se maravilha com as caixas redondas de chapéus, decoradas com gravuras de caça à raposa, caça à raposa, agora vê! mas, encanto mesmo, era o metro de madeira, como eles e elas desenrolavam o pano sobre o balcão como se fosse mágica, mas mágica mesmo era aquele bastão de pau envernizado poder conter, nele, o conceito de número e, mais ainda, a ideia de medida. Ali também se compravam eventualmente, sapatos, de uso, no caso das crianças pobres, opcional.
De “Um Curto e Infeliz Amor na Lapa”, naquela idade sem ter a menor noção do que fosse Rio de Janeiro e muito menos a Lapa, ficou a cena do protagonista ao regressar de trem para sua terra, com o coração esbagaçado que se refrigera ao receber a brisa de sua cidade, cujos limites o narrador adivinha ao vislumbrar os primeiros coradouros de sua terra, batidos pelo vento como lábaros de uma pátria perdida.
(Neste ponto, lembranças das viagens de trem para Sete Lagoas, Estação, Chefe da Estação, bilheteria: sendo o centro da história o Escritor de Pedro Leopoldo, sigamos a linha: )
Aliás, aqui desembarcamos: num dos “Coisas do Reino de Pedro Leopoldo”, como epígrafe e frontispício, escreveu J. Issa Filho:
“A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu
A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu”
(O Canto da Cidade, Tote Gira/Daniela Mercury)
Longe de veleidade ou vaidade, a declaração/reivindicação é uma profunda declaração de amor pela cidade, por parte do Escritor de Pedro Leopoldo.
Queiram os deuses da arte que tanto amor tenha sido correspondido.
O resto está nas histórias, verdadeira mitologia e cosmogonia da cidade, que tinha caixão de borracha, homem internado em maternidade, carro que anunciava panela cheia todo dia e, no outro dia, que um féretro subiria o morro em direção à necrópole local, para encher mais uma sepultura.
Porque “o cemitério quer ladeira e montes
para os quais se olha ao entardecer:
um dia estarei lá,
lá longe,
no incontestável lugar.”
(O Lugar da Necrópole, Adélia Prado).
Belo Horizonte, 18 de janeiro de 2024