100 anos de PL e Zé Issa: Ângelo escreve sobre seu pai

100 anos de PL e Zé Issa: Ângelo escreve sobre seu pai

Zé Issa, por Ângelo: óleo sobre eucatex, 54x65cm, 1989

Uma das maiores necessidades que Deus colocou no coração do homem foi a de ter um pai e poder estar ao lado dele. O pai é a figura central das nossas vidas. A morte de um pai atira o homem num estado de desamparo e vazio que leva anos para ser curado. O meu pai, por exemplo, foi uma referência para mim. Ele ensinou-me a pensar e a olhar o mundo da sua maneira e a respeitar cada ser humano como um igual. Ele veio a falecer aos noventa e dois anos e, mesmo assim, ainda é enorme o vazio que deixou na minha vida. Até hoje sinto-me incompleto, como se uma parte de mim também tivesse morrido. Quando vou visitar minha mãe, e entro no escritório que foi do meu pai, ainda o vejo sentado junto à velha máquina de escrever Remington, montando o seu cigarro, digitando as suas histórias.

Ah! Esqueci de dizer que ele gostava de fumar cigarro de palha enquanto escrevia. Sempre que eu viajava, trazia fumo de rolo, da melhor qualidade, para poder presenteá-lo. Lembro-me até hoje da cara de satisfação que ele fazia quando recebia aquele pedaço de fumo e o cuidado com que o guardava numa uma lata fechada, junto com batatas cortadas, para conservar a umidade. Ainda hoje, quando estou viajando, se vejo algum fumo de rolo à venda, surge um desejo enorme de comprá-lo, apesar de meu pai não mais estar entre nós. É que sinto como se ele nunca houvesse partido, que permanecesse ainda naquela casa, à rua Coronel Cândido Viana, esperando por minha volta.

O meu pai era dentista, a minha mãe professora de música. Vivíamos uma vida simples, uma vida de classe média baixa. Eu e os meus irmãos estudávamos em escola pública. O meu pai trabalhava como dentista durante o dia e à noite escrevia as suas histórias. Ficava até tarde da noite escrevendo. Escrevendo e lendo. Moendo no áspero, caminhando no escuro, guardando na gaveta as histórias terminadas.

Poucas pessoas conseguem entender o que move aqueles que se dedicam à literatura. Eles não buscam nada com ela. Nem riqueza, nem fama, nem sucesso. Mas a arte os atrai como um ímã. Não vivem bem sem ela. Sem ela não se sentem completos.

Quando perguntavam a ele porque toda essa besteira de ficar escrevendo até tarde da noite se não ganhava nada com isso, ele respondia que nascera e fora criado na cidade de Pedro Leopoldo. E que aqui, vaga o espírito do grande bandeirante Fernão Dias Pais Lemes. O caçador das esmeraldas, o poeta do mato, o abridor de caminhos nas noites verdes do sertão. Tudo porque se sentia atraído pela visão das esmeraldas, belas pedras verdes que o incomodavam nos seus sonhos. Nunca as encontrou, mas as buscou durante toda a vida.

Fernão Dias foi o primeiro homem branco a botar os pés na nossa terra. Acampou na região do Sumidouro em busca dos seus sonhos. E foi lá que, em nome da lei dos bandeirantes, enforcou o seu próprio filho e o deixou balançando pendurado a uma árvore. Dizem que o espírito dele ainda vaga por estas terras, talvez por isto o povo desta cidade se sente atraído pelas esmeraldas da pintura, da literatura, do teatro, da música…

E para comprovar sua teoria, revelava que não escrevia por vício ou ideal, ou desejo de aparecer, ou terapia, ou doença, ou vaidade, ou loucura, ou compulsão, ou mesmo por frescura do coração. A verdade é que escrevia porque não conseguia parar de escrever.

Se tivesse tempo, ficaria aqui horas e horas compartilhando com vocês o quanto o amava e o quanto ele significava para mim. É claro, que durante a minha vida, houve momentos em que fiquei magoado com ele. Só quando me tornei adulto foi que compreendi o amor e o cuidado que ele sempre teve por mim. Levou tempo, mas vivemos um amor-perfeito de filho e pai por alguns bons anos.

Pouco antes de morrer, ele confessou-me ter sido muito feliz na sua vida, que havia conseguido educar todos os filhos e todos estavam bem. Para ele, educar os filhos foi sempre uma meta. E uma meta difícil, pois éramos nove irmãos.

— Somos uma família feliz — foi o que disse —, Deus foi muito bom para conosco.

Ângelo Issa é engenheiro, artista plástico e escritor.  Sua estreia na literatura aconteceu em 2012, com o romance Parasitas e Predadores, sucedido por Um ganso entre andorinhas (2016), São José do Nada (2019), Eleopério (2020), Rosca Seca (2021) e Buraco sem fundo (2022).

Como artista plástico frequentou o curso livre de Desenho da Escola Guignard e o curso de Arte da Volkshochschulle, em Düsseldorf, na Alemanha. Sua exposição Daquilo que nos cerca, em parceria com os artistas mineiros Daniel Moreira e Leandro Gabriel, 2017, foi indicada pela revista Veja como uma das cinco melhores exposições em cartaz no Rio de Janeiro.

Redação

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